sábado, 25 de julho de 2009

Modernista

a Drummond


Tinha a incerteza no meio do caminho.
No meio do caminho, a incerteza.
E, mais pro lado, a pedra.
Tinha a pedra.

Eu vi a incerteza e franzi o nariz de pena:
A incerteza era um bichinho.
E feio, como era feio, meu deus.
E roía, como roía, com uns incisivos
Que queriam crescer pra sempre
Pra além do seu tamanho
E ainda além.

Enquanto fiquei parada olhando, a incerteza roeu tudo o que podia:
Graveto, plástico, guimba, cacos
Até a pedra.
Ainda não satisfeita, ela chegou pra mim
E deu de roer meus sapatos
Roeu até sangrar um dedão.

Mandei-lhe a pedra no traseiro.

Tinha a pedra no meio do caminho.
E no meio do caminho tinha a incerteza.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas ainda frescas.


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Esse poeminha foi apresentado no Festival de Poesia Falada de Varginha, em junho de 2009, por meus amigos Luiz e Junim. É com muita alegria que divido o vídeo com vocês:



Valeu, meninos!



(tinha que ter uma foto dessa, rs)

domingo, 19 de julho de 2009

Mancha




Naquela manhã cinza o dia foi levando Rita pela mão com maus modos: o café havia dormido mais que ela, por isso saiu de casa mastigando a seco mesmo um biscoito de maisena. No ônibus, não havia lugar pra sentar, na bolsa, não havia trocado certinho, no cobrador, não havia paciência, e nem nas pessoas, educação. Rita se agarrava às suas coisas com uma mão, e com a outra se segurava como podia à barra de um assento, tentando ignorar a inconveniência ocasional das pessoas que, de passagem, se espremiam contra ela. No trabalho, teve dor de cabeça, meia hora a menos no almoço, um sem-número de telefonemas infrutíferos, hora extra.

E, além de tudo, aquela chuva que no fim do expediente, e no meio do caminho, veio encontrá-la sem sombrinha. Fechou os olhos sob a água torrencial, mas não buscou abrigo: preferiu seguir para casa em passos lentos, coração resignado, esperando que junto com a água lhe fossem escorrendo pelo corpo todos os litros de frustração.

Mas, quando finalmente abriu a porta de casa, cumprimentou-a o cheiro inconfundível de bolo acabado de sair do forno. A vida era boa novamente. Chegou à cozinha para encontrar a mãe e a irmã mais nova arrumando a mesa do café. De roupa trocada, toalha sobre os ombros e o mundo de volta aos eixos, sentou-se junto às duas. E lá se foram generosas fatias de bolo com leite recém fervido fumegando nas xícaras - eram três graças de sorrisos enlevados.

Rita pensou no cheiro do leite, no gosto do chocolate, na textura da toalha macia, no sagrado. Pousou olho fixo no bolo de chocolate, como nunca havia feito antes. Era um bolo simples de cobertura, comum nos cafés da tarde, mas cujo gosto supostamente conhecido os eventos do dia haviam feito o favor de acentuar. A moça sentia o cheiro de chocolate e salivava com a boca e com os olhos - que marejavam involuntariamente, e ela tinha que se dar ao trabalho de piscar muito para evitar que as lágrimas simplesmente vertessem contínuas por suas bochechas. O bolo parecia crescer diante dela, ganhando contornos cada vez mais nítidos.

Até que o inevitável aconteceu, a irmã sempre com aquela mania. Rita viu tudo em câmera lenta: a faca se aproximando, o ângulo enviesado, uma lasca grande de bolo se desprendendo irregular, com mais cobertura do que lhe cabia.

A pequena menina lambeu os dedos depois da normalidade do ato.

Rita continuou olhando o bolo, a mãe sorvia o leite folheando uma revista qualquer. E o ar ficou inerte como dizem que acontece logo antes de um grande estrondo de desastre. Deslizamento de lama, choque de trens, terremoto, onda gigante:

"Raio de menina egoísta! Por que não corta esse bolo do jeito certo, como todo mundo faz?"

Não houve resposta. A irmã, atônita, estendeu os braços junto ao corpo e baixou a cabeça, acometida por uma vergonha que desconhecia até então. A mãe, por sobre os óculos, repreendeu a filha mais velha com um olhar duro. E por vários segundos os resquícios da catástrofe pairaram no ar, agonizaram tremelicantes sobre o chão, até que Rita tentou um remendo:

"Não ligue pro que digo. Vem, termine seu bolo, tome lá mais um pouco de leite."

Mas não houve jeito. No ímpeto de servir a irmã, a moça deixou a leiteirinha cair, entornando tudo sobre a mesa. Nessa noite custou a dormir, com a culpa atravessada entre as pálpebras: arruinara uma tela de Rubens.

Choveu por mais dez noites e onze dias.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Amor é Caça-Palavra



a Viviane Mosé


contrário de amor
não é ódio, rancor
não é raiva assassina
chilique, doença
dose de estricnina
nem mesmo indiferença.


contrário de amor
ao menos no meu idioma
eu circulei com vermelho
num dia de chuva:
ROMA.