quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Da Solidão como Arte




Há algo de sedutor na literatura latino-americana, capaz de tocar o sangue e o espírito. Talvez seja pelo compartir dessas mesmas terras entre trópicos, da mesma herança histórica. O fato é que a literatura latino-americana, incluso a brasileira, sempre me pareceu estar plena de elementos de identificação imediata e osmótica, dando-me a impressão de que as palavras não me entravam pelos olhos, mas pelas pontas dos dedos, caindo na corrente sanguínea e passando por veias e átrios pra só então chegar ao cérebro, ao centro da razão.

Dentre os brasileiros, chilenos, argentinos, venezuelanos e tantos outros responsáveis por tal façanha encontra-se um colombiano simpaticamente alcunhado Gabo, Gabriel García Márquez, dono de uma obra que abrilhanta toda a existência do chamado “Realismo Mágico”. O estilo de narrativa de García Márquez, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1982, é perpassado de elementos fantásticos, frutos de sua própria vivência com incrementos de sua virtuosa imaginação e talento descritivo.

Sua obra-marco é Cem Anos de Solidão, em que podemos acompanhar a curiosa trajetória da família Buendía num povoado fictício chamado Macondo. Este livro, alvo de inúmeros estudos e passivo de um sem-número de interpretações, é repleto de referências bíblicas, da história da América Latina, e referências pessoais do autor, num equilíbrio prodigioso que torna impossível dissociá-las. Nele, elementos místicos são colocados de forma tão natural e sem espanto, como parte inerente da vida dos personagens (feito o sol ou a chuva), que o próprio leitor é levado à impressão de que aparições fantasmagóricas e fios de sangue que cumprem trajetos exatos de subidas e descidas em caráter de prenúncio são acontecimentos corriqueiros ou verossímeis.

O livro é narrado de forma não linear, e compreende um ciclo genealógico pela repetição de destinos dos quais parece impossível escapar. Ao passar das páginas também é preciso lidar com a insistência da repetição de nomes, recurso que o Gabo utiliza não em vão na construção de personagens complexos e interessantes, e que por vezes obriga os leitores mais ansiosos a desenhar a árvore genealógica dos Buendía para não se perderem no emaranhado de Josés Arcádios e Aurelianos que vão nascendo a todo tempo, sob os olhos de matriarca centenária de Úrsula Iguarán.

Enfim, Cem Anos de Solidão é um daqueles livros que se caracterizam como divisores de água, daqueles em que se descobrem novas nuances a cada nova leitura. Acima de tudo, é uma grande ode à solidão... Ou, na mesma proporção, a pura expressão do medo deste que parece ser o maior fantasma da humanidade, explícito nas palavras do cigano Melquíades:

“Havia estado na morte, com efeito, porém havia regressado porque não pôde suportar a solidão”.


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texto publicado na Cachoeiro Cult - Dezembro 2009