Eu me lembro dos meus oito anos, me lembro bem. Como todas
as crianças, eu esquadrinhava o chão enquanto ia caminhando, e coletava meus
pequenos tesouros. Outros, deixava ali, que eram parte do pavimento, pertenciam
ao espaço entre dois paralelepípedos e às poças depois da chuva. A essa idade
eu tinha um flamboyant de esquina, e embaixo dele um bloco de pedra com inscrição
enigmática: números, letras. Em minha cabeça aquele bloco estava ali desde o
início dos tempos, pequeno monolito misterioso, propriedade de todas as
crianças da rua, sentadouro para a brincadeira de passar anel e leituras de
gibi. Dividia frequentemente o lugar na pedra com uma amiga de minha idade, e à
tardinha conversávamos nossas importâncias pueris, remexendo musgos com
palitinhos. Do outro lado da rua havia uma garagem, com um cadillac abandonado
meio tragado já pela terra batida. E britas, havia tantas. Montanhas, sempre alguém reparando a casa lento lento, subíamos
nos morros cinzentos, o barulho bom, catávamos as melhores pro
jogo-das-cinco-pedrinhas. Conservo muito vivos meus chãos de infância na memória,
sabendo-os todos de cor: degraus irregulares do beco, calçada lisinha que
servia de rampa pra deslizar quando chovia morno no verão. Cada calçada da
minha rua era um acontecimento único, de materiais e inclinação variados, que
escolhíamos de acordo com a brincadeira. A calçada rachada no meio era para
queimada. Aquela com subida pra garagem era pra partir com a bicicleta, morro
abaixo íamos. Andávamos descalços muito, nos sentávamos em qualquer lugar. Quando
você é criança é mais próximo do chão, das suas texturas, cicatrizes. Pode ser
que também saia com alguma cicatriz – a minha está bem debaixo do queixo – mas é
só porque não se pode passar incólume por tanta intimidade. Os seus chãos te
marcam, de uma maneira ou outra.
A coisa é que um dia vão te afastando deles. Te ensinam a
olhar pra frente, pra muito lá adiante. Te ensinam sobre germes e bons modos.
Te ensinam sobre a pressa. Veja que eu nunca aprendi muito bem. Nem eu, nem Manel, nem tantas gentes mais, deslumbradas,
admirando caracóis. Que bom. Continuo colecionando meus chãos, e em boa
companhia.
Agora, por exemplo, tenho uma porção de novos, de terras
mais ao sul. Chãos úmidos, de beiradas de lago, de beiradas de golfo e das
beiradas do Pacífico, derramamento de azul. Uns repletos de pedras vulcânicas,
outros poeirentos, ladeados de amoreiras. Uns encantados, de cachoeira. Seis
dias de perscrutar chãos, na companhia de outros olhos e outra sensibilidade tão
parecida à minha, que abraço e que me acolhe. Seis dias de andar devagar, de
agachar-se sobre formigueiros e folhas e esqueletos de ouriço. Obrigada, Luz,
amiga, por olhar. Por ter oito anos, junto comigo.