segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Breve descrição para uma nova anatomia da ausência.



Mais que de carne, osso, veias, unhas, sexo
Sou feita de ausência
Ausência pontuda, calcária
Minha extensão toda negros espinhos rompendo a pele
Vindos dos debaixos da alma.
Não há calma, sempre taquicardia
Nunca é dia, ninguém se aproxima
Do breu, da noite que me tornei.
Me arrasto no movimento quase intangível de mil perninhas
Sobre o chão liso demais das faltas mais fundas.
Dentro da minha noite aguda todos dormem pra sempre
Mudam de posição, sofrem seus espasmos noturnos
Sonham descaradamente
Diante de meus olhos insones
Diante da minha fome
Da minha estranha arquitetura de agulhas escuras
Veneno, inflamação
Chamas, incêndio, sirenes
Enxame de abelhas, canteiro de obras
Escombros
Uma parede emassada ali
Muitos pregos. Um quadro guerniquesco
Mel escorrendo grosso pelo pé direito
Pelo lado de dentro.

Por fora só esse silêncio.




quarta-feira, 19 de maio de 2010

Entre os Versos e o Capitão


Antes de chegar a Isla Negra, eu já sabia: não estava indo ao encontro de uma ilha. Cheguei a um povoado bem ancorado à terra, com suas ruazinhas e sua plenitude feita de sol enquanto em Valparaíso, naquele mesmo dia, havia frio e mariscal. Vi que as areias que cercam o mar de Isla tampouco são negras. São infinitos grãozinhos cor-de-trigo, de uma aspereza gentil a solas de pés. Sobre essa mesma areia pessoas e grandes pedras – essas sim, escuras – dividiam o espaço enquanto contemplavam o azul do pacífico a poucos passos. A impossíveis poucos passos, para algumas das guardiãs estáticas e sombrias que as ondas não alcançavam com seu estrondo e sua espuma. Assim como aquelas grandes pedras mansas, também não cumpri os poucos passos em direção ao mar. Era tardinha, o sol já estava em ângulo oblíquo no céu limpo de nuvens, enegrecendo a silhueta das pessoas que se punham sobre as rochas mais à frente, tornando-as também em estátuas centenárias no meu momento onírico.

Percebi que eu só poderia fazer aquela visita sozinha, ou com quem entendesse. Felizmente me enquadrei na segunda alternativa: éramos três sentados sob o sol já brando, sorrisos enlevados, com o motivo principal da viagem esperando às nossas costas: observadora, debruçada sobre o mar, a que dizem ser a mais impressionante das casas de Neruda. Estava ali a testemunha de minha mudez, de meu amor e desconcerto. Abriu suas portas para nós em meio a uma brisa já gélida, para que nos inundasse um calor cheirando a madeira e pedra, além de um cheiro que não poderia explicar, mas que me tocou mais que todos os nomeáveis. Era o cheiro das memórias despertadas por todos os objetos que o poeta colecionava – as carrancas de proa, os diablillos mexicanos, os garrafões dispostos ao longo das janelas de vidro, os caracóis de todos os tamanhos e proveniências – expostos em uma sala azul que Neruda nunca conseguiu terminar. Também havia o cheiro da espera de uma mesa permanentemente posta para amigos que não viriam mais, mas que ali estavam imortalizados nas diversas fotos coladas nas paredes (entre eles Vinícius de Moraes e Jorge Amado). Enquanto cruzávamos os corredores e cômodos que se assemelhavam a camarotes de navio, uma mulher nos dava em um espanhol suave suas explicações mais que bem pronunciadas, numa calma que não condizia em nada à minha emoção em ouvir sobre como a escrivaninha posicionada sob uma janela havia sido na verdade uma porta que chegou até ali com o acaso e com as ondas do mar; sobre Maria Celeste, a carranca que vertia lágrimas no inverno; ou sobre o cavalo que havia sido presenteado com caudas por três amigos do poeta, que lhe pregou todas e o taxou de “o cavalo mais feliz do mundo”, por possuir três caudas. Tudo isso tinha o cheiro que ainda posso evocar.

No andar de cima, o quarto de Neruda e Matilde se abria ao mar através de amplos janelões de vidro que iam do teto ao chão, de um lado a outro do cômodo, servindo-lhes uma vista opressoramente bela do mar. Caso estivessem ali deitados, naquele momento, teriam o sol a ponto de se pôr aos seus pés, como eu imaginava que havia ocorrido incontáveis vezes. De certo modo nesse lugar ambos ainda repousam – ao ar livre, num promontório que recebe diariamente o vento úmido do pacífico. Deixei que meu olhar se desviasse das letras e datas para uma pequena menina que brincava nos degraus do mausoléu. Senti que o espírito do poeta e seu amor por Matilde, por seu país e por todas as coisas que designam os cacos indispensáveis à integridade de qualquer alma, se espraiavam com leveza sobre tudo ali, iam e vinham se espiralando no vento, entre os cabelos das pessoas. Estávamos todos um tanto comovidos e chascones.

Ao final, percebi que havia passado grande parte do tempo calada durante e depois da visita. Minha amiga chilena me dirigia um olhar cúmplice de quem entendia, e de quem, mesmo depois de haver estado ali já algumas vezes, tinha a mesma sensação que eu. Caminhamos os três - eu, ela e seu filho - até os fundos da casa, para assistir a como o sol mais uma vez se punha aos pés do eterno marinheiro de terra firme. E o brindamos com taças de silêncio emocionado. Salud.


(texto publicado na edição de abril da revista Cachoeiro Cult. Foto por Cristina Briceño)

domingo, 21 de março de 2010

Subitamente




Todas as manhãs, sentava-se em frente ao espelho com a expressão impassível, a atitude quase estóica. Levava as mãos à cabeça e com movimentos treinados dividia os fios longos e escuros entre os dedos finos. Logo começava a tecer uma trança que se enredava desde o alto da cabeça até o meio de suas costas. Fazia tudo em silêncio. Acostumara-se ao silêncio, àquela indiferença mansa. A solidão de nascença lhe ensinara a não fazer muitas perguntas, a não divagar demais sobre si mesma aos pés de ouvidos de terceiros. Depois de um tempo isso parecia vital. Fatigava-lhe fazer relatos, era uma dor quase física contrariar a vontade de ficar calada. Guardava para si pequenos episódios insólitos, íntimas iluminações momentâneas.

Gostava disso, desse egoísmo quase branco de não contar. Não contava e ponto. Tecia diálogos intrincadíssimos dentro de si. Tinha milhares de segredos dos mais inócuos. Ninguém os sabia. Ainda assim, boa ouvinte que era, colecionava confissões alheias que sequer desejava com tanto ardor saber, e o fazia apenas pela satisfação de desafogar um amigo. Não era difícil, afinal, que eles confiassem em seu silêncio. O que não percebiam era que esse silêncio vinha mais do vislumbre do cansaço em usar sua própria voz do que do altruístico esforço de manter um segredo a salvo. Feliz, falava cada vez menos, entre conversas curtas ou monossilábicas. Repudiava a curiosidade alheia e não entendia o propósito do saber gratuito sobre a vida dos outros.

Mas amava, real e profundamente. Só que era um amor já tão conhecido seu que não sentia ser preciso esforço para mantê-lo. O amor com que os pais lhe ungiram, o amor de amizades desveladas. Não conhecia ainda o amor escorregadio, aquele que exige, que queima, que pede, aos gritos, por dentro. Então, logo vieram os homens e os nós. Os mesmos nós que ela havia feito pra se fechar confortavelmente em si mesma e que agora o hábito agarrava por cada uma das pontas e apertava forte. O maior e mais sufocante ficava bem ali, na garganta. Era um nó cego, feito de vários que iam se sobrepondo cada vez que reivindicava sua voz aquele tipo de amor que exigia uma doação que ela ainda não conhecia. Estendeu as mãos a todos aqueles homens esperando que fosse suficiente aquele seu punhado de silêncio cheio de explicações. Não era.

Assim, passaram-se vidas de perdas e de manhãs em que, metodicamente, trançava suas madeixas com cada vez mais severidade. Até que numa dessas ocasiões, uma voz lhe interrompeu da porta do quarto:

“Que coisa mais triste, Aimê. Trança é coisa entre irmãs.”

Adentrando o cômodo, a amiga de sorriso fácil desfez os nós apertados no topo da cabeça de Aimê, trançando os fios novamente com calma e uma frouxidão delicada, até a extremidade. Pelo espelho, a outra a observava, e, sem saber o que fazer com as mãos, repousou-as sobre o peito.

“Assim está melhor.”

Tão logo Aimê viu seu próprio reflexo, seus olhos arderam, iluminados. Começou a soltar a trança diante da amiga um tanto confusa, sentindo e amando cada gomo desfeito. Fechou os olhos e sacudiu os longos cabelos por vários minutos. Caídas dos cachos castanhos, palavras de séculos atapetaram o chão do quarto. Começou a lê-las à amiga maravilhada, na ordem em que as recolhia.

“Orquídeas!”
“Perdão!”
“Subitamente!”

E passou o dia sentada sobre o beiral da janela, berrando as restantes aos transeuntes.


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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Da Solidão como Arte




Há algo de sedutor na literatura latino-americana, capaz de tocar o sangue e o espírito. Talvez seja pelo compartir dessas mesmas terras entre trópicos, da mesma herança histórica. O fato é que a literatura latino-americana, incluso a brasileira, sempre me pareceu estar plena de elementos de identificação imediata e osmótica, dando-me a impressão de que as palavras não me entravam pelos olhos, mas pelas pontas dos dedos, caindo na corrente sanguínea e passando por veias e átrios pra só então chegar ao cérebro, ao centro da razão.

Dentre os brasileiros, chilenos, argentinos, venezuelanos e tantos outros responsáveis por tal façanha encontra-se um colombiano simpaticamente alcunhado Gabo, Gabriel García Márquez, dono de uma obra que abrilhanta toda a existência do chamado “Realismo Mágico”. O estilo de narrativa de García Márquez, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1982, é perpassado de elementos fantásticos, frutos de sua própria vivência com incrementos de sua virtuosa imaginação e talento descritivo.

Sua obra-marco é Cem Anos de Solidão, em que podemos acompanhar a curiosa trajetória da família Buendía num povoado fictício chamado Macondo. Este livro, alvo de inúmeros estudos e passivo de um sem-número de interpretações, é repleto de referências bíblicas, da história da América Latina, e referências pessoais do autor, num equilíbrio prodigioso que torna impossível dissociá-las. Nele, elementos místicos são colocados de forma tão natural e sem espanto, como parte inerente da vida dos personagens (feito o sol ou a chuva), que o próprio leitor é levado à impressão de que aparições fantasmagóricas e fios de sangue que cumprem trajetos exatos de subidas e descidas em caráter de prenúncio são acontecimentos corriqueiros ou verossímeis.

O livro é narrado de forma não linear, e compreende um ciclo genealógico pela repetição de destinos dos quais parece impossível escapar. Ao passar das páginas também é preciso lidar com a insistência da repetição de nomes, recurso que o Gabo utiliza não em vão na construção de personagens complexos e interessantes, e que por vezes obriga os leitores mais ansiosos a desenhar a árvore genealógica dos Buendía para não se perderem no emaranhado de Josés Arcádios e Aurelianos que vão nascendo a todo tempo, sob os olhos de matriarca centenária de Úrsula Iguarán.

Enfim, Cem Anos de Solidão é um daqueles livros que se caracterizam como divisores de água, daqueles em que se descobrem novas nuances a cada nova leitura. Acima de tudo, é uma grande ode à solidão... Ou, na mesma proporção, a pura expressão do medo deste que parece ser o maior fantasma da humanidade, explícito nas palavras do cigano Melquíades:

“Havia estado na morte, com efeito, porém havia regressado porque não pôde suportar a solidão”.


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texto publicado na Cachoeiro Cult - Dezembro 2009