segunda-feira, 23 de junho de 2008

Escute, Adélia




“O que vai viver, espera”
Você diz
Eu também guardo um sol ocluso em mim
Guardo, secretas, esperas sem fim
(outras nem tão secretas assim)
Por exemplo, isso bolinando meu nariz
Essa impressão de cheiro
Cheiro de tempero de comida boa
Cheiro de sabonete de bebê em banho quente
Depois de dia cheio
Cheiro bom dele, todo faceiro
Cheiro que penso que sei bem
Mas que se cumpre só pessoalmente
Reconheço-o, porém, como ninguém
Mas só depois da espera.
Ah, Adélia...
Eu espero, muito séria
E me conluio com tudo mais que espera:
Os livros com marcadores na estante
A folha por um triz ao vento, vacilante
A semente doida pra que alguém a plante.
Mas uns dias me visto de laranja berrante
E me posto ali, de saco cheio
Esperando que alguém se levante
Venha correndo da platéia
E acabe logo com essa pilhéria
Com minha cara de caixa de correio.
Pensando bem, Adélia
Esperar pra viver é pra pinto mal chocado
Coitado
De tanto esperar vira omelete
Vira quindim de padaria e claras em neve
E disso aí eu morro de receio.

Então não tiro o meu laranja, fato:
Em matéria de vida e seus janeiros
Não tenho vocação pra feriado
Quero ser dia útil o ano inteiro.










terça-feira, 17 de junho de 2008

Soneto de Aprisionamento




Eu decidi armar uma arapuca
Não, foram quatro em fila reta assim
Porque queria (e achava ideia astuta)
Um tuim, anum, pardal e um chapim

É claro que a empreitada foi em vão
O canto provocando do passaredo
Não foi, compositor, má intenção
Foi só pra terminar o meu soneto

Mas foi-se o bem-te-vi, que não mais vi
Ligeiros juriti e o trigueiro
Voaram o sanhaço e a viúva

Até quem enfim, vencida, eu percebi:
Não posso por palavras num poleiro
E desisti de vez de ser Neruda

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(soneto frustrado sobre minha incapacidade de fazer sonetos, rs)



segunda-feira, 9 de junho de 2008

Aborto





Boa tarde, doutor
Vim pedir um atestado
Lavrado, carimbado
E assinado pelo senhor.
É que preciso de uma licença
Desse mundo traiçoeiro
Pra limpar minhas paredes
Daquele sangue vermelho
Tirar um sono sem sonhos
Chorar no meu travesseiro
Bem assim um rio inteiro
Pra levar correndo essa dor.
Deixa-me entrar em crepúsculo
Dá permissão de eu me pôr
E ficar de bruços, de luto
Sobre um livro de Rimbaud
Porque algo brigou com o fluxo
E saiu sem dó, traidor
Pela boca, em horror lúcido
E morreu sem nenhum pudor.
Não tinha nome, o pequeno
Mas se tivesse crescido
Pegado corpo, alma, cor
Dentro do meu peito-abrigo
De cada um dos meus poros
Ele teria nascido:
Onda de arrepio
Ou desabrochar de flor.
E o nome dele seria
Um nome simples, doutor
(João, Pedro, José)
O nome seria Amor.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Recíproca da Borboleta Amarela




Pois então que eu acho mesmo que a gente nasce e passa por essa vida, seja em breve ou longa empreitada, por certos propósitos muito particularmente relevantes. Vejam-me vocês, eu que lhes falo agora, nascida de um galho de pé de carambola em época de frutos explodindo, polpudos e muito amarelos. Nasci prima dessas frutas, nasci com a mesma cor e mesma vontade de ser estrela. Mas ao invés daquela pose gloriosa de cinco quinas das carambolas enormes, assaltou-me a descoberta de que eu podia erguer-me acima da copa da grande árvore, aproximando-me ainda mais que minhas primas de nossos intuitos estelares.

A descoberta foi tão boa que minha vida agora tinha esse sentido: mancomunar-me com o vento vadio e sair voando por aí. Mas bicho que voa, não sei se lhes cabe saber, não fica bitolado em intuitos pequenos, não. E logo o vento boêmio começou a trazer notícias de terras longínquas, além de que à tardinha, nos fios das redondezas, amontoavam-se uns pardais cheios de história. Convenhamos que uma boa parte do que aqueles bichos despeitados piavam devia ser bem um bocado de invenções, eles que queriam me matar de inveja de seus vôos mais altos, mais distantes. Problema não havia. Por mais audacioso que lhes fosse o vôo, quem tinha a cor do sol nas asas, sem nem precisar chegar tão perto, era eu. Mas, desavenças à parte, começou a despontar em mim uma vontade pungente de lonjuras, e um dia acabei levando prosa mais longa com o vento e saí voando de um jeito que nem sei explicar, que não tinha contagem de tempo. Era acima o cortinado azul e abaixo aquele tapete verde, verde, verde, cinza... cinza? Estaquei dando baita susto no vento, fui descendo em espiral tremelicante, ansiosa feito o diabo.

Era uma selva de pedra, meu deus. Com umas centenas de sequóias de concreto e um formigueiro de gente, circulando em seu fluxo constante, massa homogênea de quereres pré-definidos. E é exatamente aqui que isso tudo que lhes disse vira pura conversa fiada, pois se cumpriu meu propósito particularmente relevante: mergulhei naquele mar de gente e rocei nos cabelos de um senhor, que, ao notar-me, aborreceu todas as outras pessoas, obrigadas a desviarem-se daquela pecinha subversiva atrapalhando o fluxo. Ah, mas que grande epifania aquela troca, e eu bailava no feixe invisível de seu olhar, encimado por sobrancelhas fartas, unidas, expressivas.

O que fazia ali, sozinho? De onde viera? Nada sei sobre pessoas, apenas que aquele exemplar estava muito meu, e que aqueles modos de me olhar me faziam muito dele. Senhor, diga a verdade pra mim, confessa que o senhor na verdade é todo assim feito de jatobá, alma de madeira nobre, porque só isso explica o meu desejo doido de me virar em pupa de novo, só pra me dependurar atrás da sua orelha e lá ficar. Ficar lá protegendo feito amuleto, pra sempre.

Mas acontece que pra sempre de borboleta é curto demais, e gente tem uma mania meio irritante de encontrar conhecido na rua e o despertar com trivialidades. Além disso, acho que todo mundo sabe que destino adora dramatizar o ato, e minha poeirinha final de vida se esvaía no meio de seu “tudo bem” devolvido.

Saiba que foi de propósito que subi até confundir-me com o sol. Naquele dia eu não cabia mais em mim, nem em palma de mão alguma: eu era estrela de quinta grandeza, e você me orbitava feito planeta errante buscando calor. Adeus, adeus, meu querido senhor.


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(Inspirado na crônica "A Borboleta Amarela", de Rubem. Texto premiado com uma viagem com acompanhante para Marataízes, hihi. Eba!)