segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Ísis Maria



Eu sei que tem a Yolanda. Aliás, todo mundo sabe - aquela coisa de beldade da escola. Mas eu não gosto da Yolanda, não. Ela tem olho verde, e tem bem alguma coisa de traiçoeiro no verde daquele olho. Feito mar, verde-verdinho, mas mesmo assim não dá um nervoso de entrar nele e pisar num ouriço qualquer? Então. Mineiro, espero o ano inteiro pra ver o mar, mas quando ele se espalha naquela verdejice toda até onde a vista dá, me encolho e me benzo da cabeça ao calcanhar. Só aí entro. Eu hein. Besta é quem não respeita granditude assim.

Mas voltando à Yolanda, é isso que penso: olho que tem muita transparência de cor conta cada lorota de alma. Bonito eu não nego que é, não. Pois que é. Mas o que deve ter de ouriço debaixo daquele verde de Yolanda, nem sei, viu. Até porque, eita, metideza. Suspiros demais pruma pessoa só, chega a ventar quando ela passa. Ô. Tô jurando, rapaz!

E chega também dessa prosa que nem é dela que eu quero falar. Quero falar é de olho preto, que olho preto é que é mistério e chão firme ao mesmo tempo. Quer ver só, Ísis Maria tem olho preto. Preto mas tão preto que quando eu me perco neles, feito em dois buracos negros da galáxia de Andrômeda, é só ir logo pensando fixo que na verdade são duas jaboticabas maduras, coisinhas muito terrenas mesmo. Ísis Maria carrega todo dia, estampada na cor do seu olho, o breu todinho da alma, que é mesmo o que a alma é de verdade: fossa abissal - igual disse o professor de Geografia - de todos nós. Eu entendo alguma coisa ali de muito dela, mas só porque ela deixa. Ela não mente, feito Yolanda, mas com quem quer usa fácil o tal truque da jaboticaba.

Ah, eu gosto de Ísis Maria. O cabelo dela também é preto e grande e à mãe dela apetece fazer umas tranças tão bem trançadas que vêm ziguezagueando lá do alto da cabeça e eu fico só tentando acompanhar onde mecha entra e por onde sai. Faço isso na aula de Matemática. Ela nota, ralha, ô, menino abobalhado, prest'enção. É muito boa de cálculo, eu não.

"Cê aprende a fazer essa trança, Ísis Maria?"

"Mas por que?"

"Uai, bonito demais pras três filhas que a gente vai ter."

"Ê, menino besta mesmo, meu deus."

Vira de novo pra frente e sorri de lado sem eu ver, mas eu vejo. Suspiro por Ísis Maria, e é só um fiapo de brisa.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Re-pouso




Não sei não, mas ultimamente
Quando você me olha fundo e castanhamente
E quando me beija lento nos entrementes
De um abraço apertado
Dedos enlaçados
Carinho sussurrado,
Eu me inundo até as bordas de um algo
Que vivo lhe contando através de silêncios:
Um querer forte de ternuras
De você ser livre
Mas uma liberdade boa
Feito andar na praia sozinho
E sentir os ombros quentes de um sol ainda brando
Ainda amarelo-clarinho
Bocejando.
Um querer assim de você ser bom
De você exercer sempre essa gentileza
Que lhe existe aos montes, em tudo o que é tom
No de seu olho, de sua pele, de sua voz
E no branco do seu sorriso bonito.
O querer último
Declarado e infinito
É o meu bem-querer mesmo
De te querer tanto e sempre bem
Só pra prolongar essa gargalhada
Só pra você respirar maciozinho
Esses respiros bons da madrugada
Quando o sono é mais puro e pleno.

Porque você é feito passarinho
De asa crescida pro vento, o sereno
Que eu quero que voe alto, viva, ouse
Mas que depois pegue de novo o caminho de mim
E se achegue, mansinho, e descanse:
Re-pouse.


(02/12/08)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Poesia Musicada ("Aborto")

Foi então que ele tomou entre mãos ternas esse poema meu, o mais desiludido da vida. E o vestiu com sua música feito casaquinho bom de lã :)




Melodia de Flávio Marão.
Música apresentada durante o show do Balaio, na Casa da Memória.

Poesia aqui.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Alado



Segue correndo, moleque
Corre ligeiro, te apresse
Que a vida se pega na unha, moleque
Que a vida não exige breque
De menino assim, feito tu
De alma simples, pés nus
E corpo magrinho
Maciço.
Então, sebo nos cambitos
Voa, isso!
Que asfalto queima, areia ferve
Mas teu pé tem junta de liga leve
e quase não toca o chão inerte:
plana baixinho sem topar espinho
pedra pontuda, caco de vidro
desilusão e tristeza.
Ê, moleque, que proeza!
que beleza esse teu pé de foguete
de asa de beija-flor, pé-de-vento
mudando paisagem em dois tempos:
Bagunçando com gosto as beirinhas da praia
Ventania da boa pra levantar saia
E poeira embaçando a visão da menina
Que nem chega a ver quem some na esquina
E nem atina
Que tinha asas nos pés que passaram zunindo
E que dentro do moleque todo dia é domingo
Cheio de importâncias por fazer:
Comer a vida no miolo da goiaba catada
Empinar vida de papel-seda
O mais alto que dê.


Noite alta já, moleque se deita
Guarda as asinhas de pé
numa garrafa com rolha
e sorri porque vai ter amanhã
(arvorinha cheia de escolhas)
e o cheiro conhecido
de domingo novo
verde em folha.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Respostas







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(a algumas páginas d'O Livro das Perguntas, de Pablo Neruda)

domingo, 19 de outubro de 2008

Arrupio

Gustav Klimt - Water Snakes II


Vem vindo vento
Rebentação
De mar sedento
Por lamber areia
Por beijar o chão
Vem vindo rio
Leito e afluentes
Em tempo bom de cheia
Caudaloso, rente
Até poder mais não
E transbordar
Invadir aldeias
Apagar candeias
Cobrir ribeirão:

Arrupio
Exército ingênuo de pêlos
Essa mini-horda de fios
Perdidos no afã
Erguendo-se, festeiros
Ao som da flauta de Pã.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Anita Poesia



Anita Poesia,
Nascida mirradinha a esmo
Com sobrenome esse mesmo
E a desalegria de virar piada
De Anita Rima
Anita Prosa
Anita Palavra-Cruzada,
Agora virou moça feita
Contornada
Cintura bem marcada
Boa seguidora de receita
Boa arrumadeira de casa.
Mas seu prazer mais despudorado,
Aquele mais incontido,
É se perder nas eternas provações
Daquela sua dúzia de vestidos:
Seu ritual pagão comprido
De agradecer de manhãzinha.
E se, enfim, decide que chega,
Deixa a cama coberta de flores
Decotes, nesgas e fitinhas,
E sai atrás de pão e manteiga,
Descendo a rua, sozinha,
Encimada por azul-azulejo
E ladeada pelos beijos
Dos rapazes da purrinha
E cantoria das avós
(que cantavam bem assim):

Olhe Anita Poesia,
Com seu cheiro de jasmin
Espalhando seu bom-dia
Colorida como só.
E vai muito bem vestida
Num poema de bolinha
Com barra de sianinha
E manguinhas de filó.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

L'amour


Saio pela porta com o olhar dele sobre minhas costas. Saio calada, mas esse meu amor mais sem conserto do mundo fica sussurrando au revoir por sobre meus ombros. E pede pra eu voltar sempre.

Sil vous plait

Ele diz, educadinho.

Faz bico, esnoba o vernáculo, traga um cigarro na ponta da piteira envernizada, e, com classe, espera a vez.

Sinto dó.

É que é um amor boboca, de cinema francês.
Coitado, não sabe que só funciona em preto e branco, em tela plana, e que dura um rolo de duas horas.

Com boa vontade, três.

Tadinho, não sabe nada da vida. Não sabe que não cabe àquele homem, que é amor só de freguês, de pipoca, e solução apenas pra dia tedioso de chuva fina.

Esse amor vai perder a pose, cair do salto e ralar o joelho.

Nesse dia eu grito de longe que avisei, ó, teimoso! Talvez volte só pra apagar o cigarro, catar os cacos da piteira, o salto quebrado, soprar o machucado do pobre diabo.

Vai ver até fico (ora, se me posso com olhinho marejado), lhe calço uns sapatos baixos, lhe tasco um curativo, lhe tiro os vícios e meto-lhe, ao invés, juízo, aos bons bocados.

E em bom português falado.




(2007 / 2008)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Dilema de uma Cor



O negócio, menino, é que eu sempre me achei morena, assim, do tipo brasileira nascida num dia de calor franco, num meio-dia de arroz e feijão e jarra de suco de manga dum almoço interrompido pra me verem nascer. Sempre me achei morena e brejeira feito as brasileiras mesmo são, e sempre fui menina de voltar dos janeiros com marcas de biquini: é que tenho pele que gosta de sol, e agradece dourada, responde cheia de um certo orgulho-jambo. Só que essa morenice que lhe cabe é um absurdo, viu, afronta enorme à palidez dessas caras comuns de inverno. Menino, que atrevimento, eu descobri que você é todo por igual feito de uma cor que – sei lá – se come ou se bebe com uma cara boa de provar sobremesa de domingo. Por que é que você não desbota em tempo desse, de chuva? Eu desboto. E sua cor abraçando a minha me virava inteira num tom de lua nova, você me brilhava no escuro acendendo em mim um milhão de pontinhos de luz. Sua morenice íntegra me fazia saber-me melhor e me fascinava em mistérios. Como no dia que dormi sobre seu peito e sonhei que seu torso na verdade era feito de terra, e que o que pulsava sob meus ouvidos não era coração, não, mas semente se preparando pra brotar. Acordei pensando sobre o que poderia nascer assim de dentro de você, no meio da madrugada. Pensei em pé de cacau, ou abiu, e tal.

Mas, meu deus, pois que agorinha mesmo chove tanto, e fico só e incolor, à mercê. De vez em quando acordo à noite e, alarmada, perco a visão de uma mão, ou pé, por uns três segundos. Minha cor anda em crise desde que soube sua ausência, de tão mal-acostumada que estava. Crise de identidade. Já prometi a ela o sol inteiro de janeiro, e que pare já de choramingar. Enquanto isso, espero que ela não me apronte e eu não suma. Ou que eu lhe encontre numa esquina prum abraçozinho de salvação. Não é por mim, você sabe. Ando bem, ando tão bem... É só pr’essa pobre cor fora do tom.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Cômodo


Havia ali uma chave, pra fechadura de uma porta geniosa que não deixava a chave virar enquanto ela não estivesse nem muito pra lá, nem muito pra cá, mas em flutuante equilíbrio . E a porta pertencia a um quarto sem uso em que jazia apenas uma cômoda de madeira escura e rústica com gavetas vazias. A moça havia se mudado há pouco tempo para aquela casa, que se mostrava maior do que ela realmente precisava. Sozinha, tomara apenas um dos quartos, adjacente ao primeiro, em que couberam todas as suas poucas coisas, com exceção da velha cômoda herdada da avó (mais por destoar do resto da mobília marfim que por falta de espaço).

Então, ali ficava o quarto, com a cômoda no âmago, como um filho na barriga, encerrado no mistério do porvir. A cômoda e o quarto causavam-lhe uma sensação de iminência e solidão tão aguda, que a moça sempre mantinha a porta fechada. Essa última pelo óbvio da cômoda ali, tão disponível e desacompanhada. E a primeira porque não era possível a solidão de uma cômoda num quarto. Era sacrílego, e sempre que ela ali entrava, pra desfazer o trabalho árduo da poeira, que levava dias pra se juntar em uma fina camada sobre o chão (e a cômoda), achava que algo estava pra acontecer, e logo. E saía com a urgência e a tez pálida de quem comete um crime.

Até o dia em que a moça foi iluminada por uma simplicidade que lhe queimou as maçãs do rosto. Noitinha de terça-feira, tirou os saltos na entrada do prédio, pra que pudesse correr pelas escadas acima. Tinha umas frases na cabeça, e não podia perdê-las de nenhum jeito. Girou a chave na fechadura com as mãos trêmulas, e buscou o bloco e a caneta que sempre ficavam ao lado do telefone.

“Hoje plantei três mudinhas de quaresmeiras numa terra boa assim da cor do seu olho. Fevereiro que vem já vão dar flor.”

Dobrou o papel em quatro e dirigiu-se para o cômodo vazio, que, uma vez aberto, parecia muito mais compacto agora que se enchera de propósito. Abriu a primeira gaveta da cômoda e pousou o papel sobre a madeira. Quando fechou a porta atrás de si, transbordava de um corretíssimo sentimento de satisfação, como se o mundo tivesse retomado uma ordem obrigatória, que ela houvera desorganizado ao criar aquele sem-sentido para o quarto.

Mas agora não havia mais angústia, pois que o sentido estava bem ali: era um quarto de memórias, afinal. Agora ela não precisava ter medo de esquecer nada, que era só trancar tudo ali e pronto. É que não contei ainda, mas a moça morria de um medo de esquecer as coisas. Mas não era o tipo de esquecer daqueles de deixar molho de chave em mesa de padaria, ou sombrinha em banco de ônibus. Era uma desmemória que ela julgava muito mais séria, como esquecer o barulho da chuva sobre o toldo de ponto de ônibus num certo dia de verão, ou aquela frase que o namorado havia dito tão à toa com um sanduíche pelo meio nas mãos.

Depois de pouco tempo as três gavetas da cômoda estavam abarrotadas. A primeira de papéis escritos:

“Mais ou menos é sempre menos, filha.” – disse a velha na fila, filosofando a esmo.

“Como faz sorvete céu-azul, quando o dia tá assim?” – perguntou ao sorveteiro o menino de quatro anos, na fatalidade de um dia nublado.

“Separo um pouco pra você, todos os dias, sem azeitonas” – disse a moça do refeitório.


A segunda era de fotos. A do topo, por exemplo, tinha muita gente na calçada, em volta de um saquinho de pipoca esparramado, feito corpo caído do oitavo andar. Pelas expressões, quem mais sofria era uma menina de uns cinco anos, viúva.

A terceira, de CD’s etiquetados. RISADAS, ONDAS, ELE RESPIRANDO ENQUANTO DORME, etc.

Daí vieram as caixas. Muitas, pelo assoalho: um brinco de miçanga verde encontrado no chão do metrô (“de uma garota que saiu de um sebo com Kundera sob o braço”), uma chave cor de cobre, laço de fita encarnado (“saída de uma escola – festa de São João”), carrinho de brinquedo sem rodas traseiras, um chinelo verde água número 33, uma brita de construção (“obra de casal simpático, provavelmente recém casados”), pingente meio quebrado em forma de gota.

Mas ainda havia o medo. Era tanta coisa na vida pra entregar aos caprichos duvidosos da memória humana. Pensou e pensou e teve uma idéia. Revirava esses pequenos tesouros quando ouviu as batidas na porta da frente. Era o namorado. O Jonas, Jonas das quaresmeiras em flor em fevereiro.

“Me ajuda com a cama”.

Jonas desmontou a cama e o pequeno armário de roupas. Montou de novo no outro quarto. Jonas levou televisão, filmes gravados, ajudou com todos os livros. Muito compreensivo, não questionava, apenas ouvia:

“Não posso esquecer essas histórias, Jonas. Sabe quando Mário fala que vai afundando o nariz pelos cabelos de Maria, e diz que é engraçado como a perfeição fixa a gente? Sabe?”

“Sei...” Jonas sem muita certeza.

“Então, imagina se me esqueço disso, não posso nunca não. Aqui fica tudo seguro, nunca esqueço.”

“Tou te entendendo.”

“Jonas...”

“Sim?”

“Sente ali na cama, vá? Queria te ver ali.”

Jonas sentou. Súbito, a moça saiu correndo, trancou a porta por fora. Dois breves segundos de silêncio e depois gritos de abre abre abre, agora, você está louca. Batidas na porta. Já estava arrependida, tentava girar a chave para abrir o quarto, mas Jonas, enfurecido, forçava para puxá-la, do lado de dentro do cômodo. A chave não girava, a moça chorava, Jonas gritava.

Até que o barulho tilintante e inevitável pôs fim ao caos: a chave partiu-se em duas. A moça olhou a metade que segurava entre os dedos. Do outro lado da fechadura congestionada, apenas silêncio incrédulo.

“Desculpe... amanhã bem cedo chamo um chaveiro” disse, numa súplica quase sem voz. A resposta veio dura, reta:

“Tudo bem.”

Não havia nada a fazer a não ser esperar. Com a alma arrasada, debruçou-se na janela, e, depois de tanto fitar o breu da noite acima, sentiu sono. Cochilando com as mãos sob o queixo, sonhou um sonho estranho onde tudo ganhava asas e saía voando pela janela do quarto ao lado. Jonas, com suas belas e longas asas cor de creme, liderava a comitiva. E lá se ia tudo atrás, até o último papelzinho com trejeitos de borboleta, do décimo andar de um prédio cinzento de São Paulo em direção à lua.

Acordou encolhida sobre o tapete na manhã seguinte, sem lembrar o próprio nome. Correu para o outro quarto. Esquecida também da idéia do chaveiro, e com uma força de desespero que desconhecia, deu três chutes no centro da porta e o interior do quarto se expôs com a violência de um soco de revide: janela escancarada, e nada além de uma longa pena planando pertinho do chão com a brisa da manhã.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Sozinhez


Sozinhez é sina
E não vem da sala vazia
Nem da cadeira sem sentante
Nem do bodoque sem menino
Ela não vem de cima
Feito castigo divino
É destino
É por dentro
Nascida e crescida
Banhada em ungüento
De batismo
É cataclismo
Silencioso
Que quase mata
Mas não
(a sádica)
É calo na ponta do coração
Pendendo pro lado esquerdo
E, esporádica,
Causa inquietância
Medo
Sede
Transparência
Ou cor da mais próxima parede.
Sozinhez é amiga de infância
Mal de filho único
Ou de quem tem mais irmãos
Que os dedos podem contar
E, cadela, é mancomunada
Com todo o silêncio que há
Nos telefones que não tocam
Nas cartas que não chegam
Nas pessoas que não sentem saudade
Nem nada.

Sozinhez não é coisa de idade
É marca de nascença na testa
É maldade
Da simples natural seleção
É festa
Em sótão cheio de fantasma
Esse calo pressionando o pulmão
Essa falta de ar que me pasma.

Sozinhez é asma.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Tereza e a Estante


Os olhos grandes olham, com lascívia
O coração pulsando, muito alerta
Os homens dispostos à sua frente

Fita-os ela, com a boca entreaberta
De crianças olhando pipoca quente
Despejada em saquinhos, fresquinha
Os mesmos olhos brilhantes
Da menina e a pipoca:
É minha!
Tereza e seus possíveis amantes

Ergue uma das mãos, em incerteza
E desliza-lhes os dedos pelos torsos
Vacila, pondera, sobre quem a mereça
Puxa-os para si e toca-lhes os rostos
Um a um os sente, vagarosa
Que essas horas dispensam avareza

(Depois conta ela, fingida,
Essa menina Tereza
Metade cenho franzido,
Diz ela por pura estranheza
Metade sorrisinho torto, metido
De quem não diz, mas tá prosa):

Veio Vinícius, num andar atrevido
Co’umas propostas muito indecorosas
De brigadeiro, purê e Europa

E enquanto Pablo jurava um amor de pureza
Jorge apostava que eu era menina fogosa
Já Carlos era doce nos versos
Homem cheio de sutilezas

Até Gabriel chegar, em polvorosa
E me acusar de, na verdade, ser princesa
De um lugarejo longe, descartado
Dos mapas, dos ventos da rosa,
Repleto de paisagens pitorescas.


Ah, Terezinha, eu entendo
Que assim só com nervos de aço
Entendo tanto que tou vendo
Você saindo de fino
Com todos debaixo do braço
(hein, sacana!)
E sei que está pensando em um
Pra cada dia da semana.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Particularidades de Helena




Atirou o calhamaço de folhas rabiscadas à parede, irritada. Sofria de uma tristeza tão desgraçada, tão mal-feita e rascunhada, e negada, que às vezes se sentia feliz – profundamente. Por isso não padecia com beleza, nem era alegre de verdade. Logo perdeu a visão do vermelho. Quando o inverno chegou e os morangos estavam graúdos e acinzentados, sangrou um filete negro pelo nariz e nunca mais rimou nada.





quinta-feira, 24 de julho de 2008

Otoño





Cheguei a Santiago do Chile em época cor de pêssego e terracota, fugindo à tendência turística de estações de esqui, um frio de doer, e possíveis músculos contundidos. Queria o anonimato de uma baixa temporada, em que passaria despercebido entre os transeuntes, me misturando à vida local. Escolhi o Outono. E o que encontrei foi uma cidade coberta de um glamour tão despretensioso, que me causou assim uma comoção muito discreta que ninguém chegou a notar. É que a cidade me pareceu uma São Paulo muito comum, com seus arranha-céus e trânsito caótico. Mas os parques, ah, os parques. Enquanto que à noite eu me deleitava com a refinada gastronomia santiaguina, com seus picorocos e salmões a ótimos preços, durante o dia meu tempo era dedicado a conhecer os parques espalhados por diversos pontos da cidade, realçando a estação como belas moças de vestidos acinturados de longas saias, colo moreno e perfume amadeirado.

Pois em um desses dias levantei-me bem cedo pra encontrar-me com minha favorita. Era domingo de manhã e eu caminhava pelo Parque Florestal, o El Diário pendendo de minha mão direita, enquanto um copo de café fumegava entre os dedos da outra mão. Que rico desayuno! – treinei, mentalmente, meu espanhol. Normalmente, aos domingos, gostava de misturar as notícias ao café como quem molha nele o pão com manteiga, ou adiciona torrões de açúcar. Ao fim da xícara – ou do caderno – sentia-me estranhamente saciado.

Com o tapete de folhas secas estalando sob meus pés, comecei a espiar as manchetes.



Bolsa bajó 1,14% y puso fin a racha de alzas

Um gole de café-café.



Velasco pidió actuar con prudencia frente a complejo escenario...


Mais um gole. E acabei fechando o periódico, aborrecido. Ainda era muito cedo e o silêncio pungente demais para leituras de jornal. O lugar era muito amplo, as folhas estalavam aqui e ali, e de repente me senti companhia maçante àquela moça esbelta de pele acobreada. Pouquíssimo galante. Decidi dedicar meu café à canela e ao caramelo dela, e fiquei tendo pensamentos de que espécie de gatilho do tempo amarelece as folhas e as leva todas ao chão. E chuva de outono, que parece chiar como água em lâmina de aço quente? Outono pra mim ganhou conotações de freio, fim e consciência, e aquela visão de folhas aos montes no chão de repente me caiu como confete em dia derradeiro de carnaval, naquela muito minha manhã vazia.

Freio, fim e consciência.

Quem conta a passagem de tempo em primaveras nada entende de uvas carmenére e amor. Meu coração são cinqüenta outonos muito bem sofridos, obrigado. E ele pulsa amarelo como o do poeta, de tanto no responder.










(para Cris. E a manhã é essa)


quinta-feira, 10 de julho de 2008

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Pequena Saga do Passarinho Mudo





Nasceu numa manhã de março – manhã cinza de chuva forte. O desespero de seus irmãos e a água caindo do céu daquele jeito ensurdecedor falavam mais alto que sua própria estupefação e aquela fome visceral de ter um pedaço do mundo preenchendo por dentro (que podia, sim, vir em forma de um nacozinho de minhoca, por favor). Mas como quem não chora não mama, veio minhoca, veio lagartinha e o escambau, e nada de sobrar um pedacinho que fosse pra saciar aquela fome, que parecia ser maior que sua pancinha pelada de filhote. Foi só quando os outros dois pequeninos se acalmaram, assonsados com o banquete, que ele conseguiu se fazer notar. Ora, reparou muito bem reparado que era tão feio e cabeçudo quanto os outros dois, e não entendeu o porquê da exclusão – palavra humana que não conhecia, mas que sentia fazer tremer seus cambitinhos. Daí abriu bastante o bico e aproveitou o silêncio e a coincidente estiagem pra gritar bem alto por uma minhoca muito da gorda, e que fosse sem demora:

“ ”

E foi isso: um fiapo de ar que nem vestígio algum de som tinha. O passarinho ainda continuou aquela pantomima maluca, e os genitores, embasbacados, entenderam tudo:

“Josefina, o piá é mudo feito uma porta.”

“Mudo. E agora, Astolfo?”

“E agora?”, devolveu Astolfo.

E agora? E agora, minha gente, que o passarinho mudo fez a única coisa que poderia fazer naquele momento: cruzou suas asinhas diminutas numa bela banana para seu Astolfo e dona Josefina e catou o primeiro besouro cascudo que achou dando sopa na borda do ninho, enfiando-o bico adentro. E lá se foi, arranhando, relutante que só, seu primeiro pedaço de mundo goela abaixo.

E por muitas vezes ainda o mundo seria bem difícil de engolir. Afinal, quais são as perspectivas de um passarinho incapaz de cantar? De embalar com suas canções namoradinhos num fim de tarde, de provocar o assovio do senhor fumando um cachimbo na varanda?

Vá saber. O fato é que, num dia qualquer, pegaram o passarinho numa arataca. Foi o caos. Era um casal de velhos. Colocaram o bicho numa gaiola e ficaram olhando. A velha o achou tão bonito, daquela cor amarelo-manga, achou muito lindo mesmo. O velho foi logo dizendo que era um canário belga, que canário cantava que era uma beleza, e que canário belga, então, era uma coisa assim de doido, devia ser porque tinha vindo das europas.

Ficaram olhando aquela alteza de além-mar.
E o passarinho lá, mudinho da silva.

“Ô, Maria, o bicho tá assustado. Vamos dar um tempo pra ele se acostumar que daqui a pouco ele canta, cê vai ver.”

E o tempo virou um dia, dois, e nada. A velha já estava ficando exasperada. Então quer dizer que aquele bicho folgado comia, bebia e fazia sujeira o dia inteiro, pra não soltar nem uma notinha que fosse?

“Geraldo, você que limpe essa gaiola! Assistencialismo, comigo, não!”

O velho, esperançoso e paciente, aceitou a empreitada. E até começou a fazer umas pesquisas, pra descobrir um jeito de desencantar aquela peste de canarinho. Um dia descobriu algo interessante: leu em algum lugar que música clássica era um negócio ótimo pra inspirar canto de passarinho. Não perdeu tempo. Juntou a nata daquele pessoal – Beethoven, Mozart, Bach e tal, e começou a tocar aquilo o dia inteiro.

De início parecia que algo havia despertado no canarinho. Ele ouvia os sons com tanta atenção, que seu Geraldo tinha certeza que ele começaria a cantar a qualquer momento. E, realmente, logo toda aquela música erudita surtiu resultado. Manhãzinha de setembro, corre seu Geraldo à cozinha acudir dona Maria, pois tinha ouvido um barulhão de caneca se espatifando. Chegando lá, a cena tétrica: aquela bagunça de café com leite e cacos pelo chão, e a velha com as mãos no rosto e os olhos esbugalhados em direção à gaiola.

Ao som da Sinfonia n. 3 de Beethoven, o passarinho brandia suas asas no ar energicamente, olhinhos fechados e expressão grave, como um regente apaixonado à frente de uma primorosa orquestra invisível. Mas sua carreira como maestro naquela casa foi curta. Apesar dos protestos do marido, dona Maria escancarou a portinhola e sacudiu a gaiola na janela.

“Xô, passarinho caduco.”

Bem que o canarinho tentou dividir sua mais nova e maravilhosa descoberta com os outros pássaros. Pôr-do-sol, quando todos voltavam em revoada, ficava por perto. Num lugar visível, enquanto os outros cantavam, ele se punha a sacudir as asinhas, como se pudesse fazer daquela desordem de pios uma bela sonata de ocaso... Mas qual o quê! O bem-te-vi continuava com aquela história de ter visto não sei quem, e o sabiá só sabia mesmo assobiar.

Sobrou até pro galo da vizinhança. Canarinho cismou que ele era um talentoso tenor desperdiçando dom com aquela sina de despertador. O galo não entendeu e ficou por isso mesmo.

Mas, mesmo assim, o canarinho mudo viveu pra sempre cheio de música. Ele todo era música pura. Brincava de reger o som do rio, as folhas balançando e os passos das crianças. E quando cansava de reger os sons do mundo, se punha num fio bem escolhido e ficava lá por horas em pose de clave de sol. E todo mundo sabe que a tal clave mantém o sol no lugar. Ele gostava de achar que mantinha o Sol no lugar. Era tarefa nobre, era um segredo entre ele e o Universo.



segunda-feira, 23 de junho de 2008

Escute, Adélia




“O que vai viver, espera”
Você diz
Eu também guardo um sol ocluso em mim
Guardo, secretas, esperas sem fim
(outras nem tão secretas assim)
Por exemplo, isso bolinando meu nariz
Essa impressão de cheiro
Cheiro de tempero de comida boa
Cheiro de sabonete de bebê em banho quente
Depois de dia cheio
Cheiro bom dele, todo faceiro
Cheiro que penso que sei bem
Mas que se cumpre só pessoalmente
Reconheço-o, porém, como ninguém
Mas só depois da espera.
Ah, Adélia...
Eu espero, muito séria
E me conluio com tudo mais que espera:
Os livros com marcadores na estante
A folha por um triz ao vento, vacilante
A semente doida pra que alguém a plante.
Mas uns dias me visto de laranja berrante
E me posto ali, de saco cheio
Esperando que alguém se levante
Venha correndo da platéia
E acabe logo com essa pilhéria
Com minha cara de caixa de correio.
Pensando bem, Adélia
Esperar pra viver é pra pinto mal chocado
Coitado
De tanto esperar vira omelete
Vira quindim de padaria e claras em neve
E disso aí eu morro de receio.

Então não tiro o meu laranja, fato:
Em matéria de vida e seus janeiros
Não tenho vocação pra feriado
Quero ser dia útil o ano inteiro.










terça-feira, 17 de junho de 2008

Soneto de Aprisionamento




Eu decidi armar uma arapuca
Não, foram quatro em fila reta assim
Porque queria (e achava ideia astuta)
Um tuim, anum, pardal e um chapim

É claro que a empreitada foi em vão
O canto provocando do passaredo
Não foi, compositor, má intenção
Foi só pra terminar o meu soneto

Mas foi-se o bem-te-vi, que não mais vi
Ligeiros juriti e o trigueiro
Voaram o sanhaço e a viúva

Até quem enfim, vencida, eu percebi:
Não posso por palavras num poleiro
E desisti de vez de ser Neruda

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(soneto frustrado sobre minha incapacidade de fazer sonetos, rs)



segunda-feira, 9 de junho de 2008

Aborto





Boa tarde, doutor
Vim pedir um atestado
Lavrado, carimbado
E assinado pelo senhor.
É que preciso de uma licença
Desse mundo traiçoeiro
Pra limpar minhas paredes
Daquele sangue vermelho
Tirar um sono sem sonhos
Chorar no meu travesseiro
Bem assim um rio inteiro
Pra levar correndo essa dor.
Deixa-me entrar em crepúsculo
Dá permissão de eu me pôr
E ficar de bruços, de luto
Sobre um livro de Rimbaud
Porque algo brigou com o fluxo
E saiu sem dó, traidor
Pela boca, em horror lúcido
E morreu sem nenhum pudor.
Não tinha nome, o pequeno
Mas se tivesse crescido
Pegado corpo, alma, cor
Dentro do meu peito-abrigo
De cada um dos meus poros
Ele teria nascido:
Onda de arrepio
Ou desabrochar de flor.
E o nome dele seria
Um nome simples, doutor
(João, Pedro, José)
O nome seria Amor.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Recíproca da Borboleta Amarela




Pois então que eu acho mesmo que a gente nasce e passa por essa vida, seja em breve ou longa empreitada, por certos propósitos muito particularmente relevantes. Vejam-me vocês, eu que lhes falo agora, nascida de um galho de pé de carambola em época de frutos explodindo, polpudos e muito amarelos. Nasci prima dessas frutas, nasci com a mesma cor e mesma vontade de ser estrela. Mas ao invés daquela pose gloriosa de cinco quinas das carambolas enormes, assaltou-me a descoberta de que eu podia erguer-me acima da copa da grande árvore, aproximando-me ainda mais que minhas primas de nossos intuitos estelares.

A descoberta foi tão boa que minha vida agora tinha esse sentido: mancomunar-me com o vento vadio e sair voando por aí. Mas bicho que voa, não sei se lhes cabe saber, não fica bitolado em intuitos pequenos, não. E logo o vento boêmio começou a trazer notícias de terras longínquas, além de que à tardinha, nos fios das redondezas, amontoavam-se uns pardais cheios de história. Convenhamos que uma boa parte do que aqueles bichos despeitados piavam devia ser bem um bocado de invenções, eles que queriam me matar de inveja de seus vôos mais altos, mais distantes. Problema não havia. Por mais audacioso que lhes fosse o vôo, quem tinha a cor do sol nas asas, sem nem precisar chegar tão perto, era eu. Mas, desavenças à parte, começou a despontar em mim uma vontade pungente de lonjuras, e um dia acabei levando prosa mais longa com o vento e saí voando de um jeito que nem sei explicar, que não tinha contagem de tempo. Era acima o cortinado azul e abaixo aquele tapete verde, verde, verde, cinza... cinza? Estaquei dando baita susto no vento, fui descendo em espiral tremelicante, ansiosa feito o diabo.

Era uma selva de pedra, meu deus. Com umas centenas de sequóias de concreto e um formigueiro de gente, circulando em seu fluxo constante, massa homogênea de quereres pré-definidos. E é exatamente aqui que isso tudo que lhes disse vira pura conversa fiada, pois se cumpriu meu propósito particularmente relevante: mergulhei naquele mar de gente e rocei nos cabelos de um senhor, que, ao notar-me, aborreceu todas as outras pessoas, obrigadas a desviarem-se daquela pecinha subversiva atrapalhando o fluxo. Ah, mas que grande epifania aquela troca, e eu bailava no feixe invisível de seu olhar, encimado por sobrancelhas fartas, unidas, expressivas.

O que fazia ali, sozinho? De onde viera? Nada sei sobre pessoas, apenas que aquele exemplar estava muito meu, e que aqueles modos de me olhar me faziam muito dele. Senhor, diga a verdade pra mim, confessa que o senhor na verdade é todo assim feito de jatobá, alma de madeira nobre, porque só isso explica o meu desejo doido de me virar em pupa de novo, só pra me dependurar atrás da sua orelha e lá ficar. Ficar lá protegendo feito amuleto, pra sempre.

Mas acontece que pra sempre de borboleta é curto demais, e gente tem uma mania meio irritante de encontrar conhecido na rua e o despertar com trivialidades. Além disso, acho que todo mundo sabe que destino adora dramatizar o ato, e minha poeirinha final de vida se esvaía no meio de seu “tudo bem” devolvido.

Saiba que foi de propósito que subi até confundir-me com o sol. Naquele dia eu não cabia mais em mim, nem em palma de mão alguma: eu era estrela de quinta grandeza, e você me orbitava feito planeta errante buscando calor. Adeus, adeus, meu querido senhor.


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(Inspirado na crônica "A Borboleta Amarela", de Rubem. Texto premiado com uma viagem com acompanhante para Marataízes, hihi. Eba!)

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Ode ao olho




Não é por nada, não
É mais porque gosto de rascunhar papel
É porque quando escrevo assim, ao léu
Dá vontade de falar do céu
Dá ganas de contar do breu.
Mas hoje é só esse olho seu
Que, ai meu deus
É de um castanho de desatino
É um olho assim, de menino
De taurino
Com ascendente em leão.
É olho que, quando a luz é certeira
Tem luxos de mudar coloração
E de roubar minha cor, minha ação
Em espantamento de criança
Em rendição de inseto preso em âmbar
Pontinho preto na sua íris caramelada
Imóvel, exposto em pose atrapalhada
A alma entregue à sua salvação.
E seus cílios agora, então?
São todos feitos de matéria-carinho
Curvadinhos
Ponta de asa de passarinho
Flor de dente-de-leão.
Se eu soprar seu olho, menino
Espalho seus cílios no vento?
E o que acontece na hora
Que eles tocarem o chão?
Será que você vai nascendo
À beira do caminho que ando
Pra, seguido, eu ir te encontrando
E poder segurar sua mão?
Ah, me desculpe, menino
Essa divagação sem tamanho
Mas explico esse súbito assanho
Confesso que há, sim, razão:
É que quando eu fecho o olho
(que estranho)
Nem azul nem breu
É castanho
Que tinge o avesso das pálpebras
E me preenche a visão.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Prece de Maria Cândida



Ó, meu pai
Tira de mim essa candura
Nem precisa tirar tudo, aliás:
Some só com esse can
Troque aí por cã
Cadela
Quero ser dura
Cã dura
Cadela difícil
Tem mais graça, meu pai.
Deixa, ao invés, eu ser coisa que queima
(queimadura)
Ser coisa que ata
(atadura)
Coisa que morde
(mordedura)
E, por favor, coisa que per
(perdura)
Não me largue sozinha
No meio dessa ternura
Jura
Com a mão no peito.
É que eu ando mal
Ando muito enjoadinha
Desse defeito
De fábrica.
Enjoada, nada
Ando puta.
Chega de açúcar
Quero páprica
Vermelha
É muito mel, meu pai, muito mel
Quero a picada da abelha.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

(M)ar



Mar
Começa com eme
De molhado
De maravilhoso
De minha-santa-iemanjá
Por propósitos semânticos óbvios.
Tudo fantasia
Explico já:
No fundo é ar
De tez verde, azul, fria
E de alma difícil
Que ninguém aprendeu a respirar.
Ele se sabe essencial, mas se disfarça
Em água não potável, não lavável,
Por vezes nada amável
Pouco afável
Ao surfe dos meninos, aos castelinhos à beira-mar
À mocinha distraída na cadeira listrada retrátil,
Que toma um belo banho, sem esperar.
É medo dele, desse ar indomável
É orgulho mesmo
Vontade de guardar segredo
De ser impermeável
Sem o ser.
É querer se esconder,
De tanto aparecer.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Fuso Horário




A gente bem que tenta
A gente até inventa
Mas não consegue caber no tempo
A contento.
Ficam sempre umas arestas
Umas sobras de sentimento
Fica um querer de mais vento
De ponteiro andando lento
De esticar as horas
Feito fuso mudando constantemente
Feito semente
Que enrola de preguiça de brotar.
Quando voltar
Chega de nossas coisas cheias de dobras
Pra caber em espaço pouco
Vamos ali tirar a prova
De que o tempo pode parar:
É só a gente sair seis pras sete
E ir indo com qualquer vento oeste
E garanto que hora nenhuma
Vai inventar de passar.
E se alguém decidir ligar, preocupado
No meio da nossa décima segunda noitinha
É só acalmar o chato
O pobre desavisado:
“Aqui é de Tóquio e ainda são sete.
Aliás, seis e cinqüenta e quatro.”


quarta-feira, 30 de abril de 2008

Sobre a Raiva



Lista de coisas que dão raiva:

Prender o dedo na janela
Queimar mão na panela
Ter um roxo na canela
Manchar minha saia amarela
Ver você com ela.

Ódio, não.

Ódio paralisa, faz a vida revirar em dor.

Ódio anuvia o juízo.

Já a raiva faz isso:

Recolher o dedo entre os lábios
Usar uma pomadinha
Recorrer à calça jeans
Tentar receita de vó
Virar o rosto e seguir em frente
E só.




(02/08)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Canjicas




Quando eu era pequenininha

Filha de Batata

(batatinha)

Barriga saliente

Pé na calçada quente

Cambalacho colorido na orelha

Minha vó sentava na varanda

Descascava mexerica

E eu me ria com as proezas dos moleques

Com as cores das pipas

E minha vó dizia:

Óia as canjicas

Essas canjicas!

Vou pegar todas elas

jogar na panela

fazer canjicão

com coco e canela.



Eu me ria mais um pouco

(uma canjica cá em baixo

outra lá em riba)

ela fazia que levantava

pegava a chinela velha

e eu voava pela janela.

Apelo



Devagar com o andor
Que minh’alma é de dormideira
Ela se fecha em dor
Às vezes, eu queira ou não queira
É que é uma falta de cores
Anteriores
Uns dissabores
Que quase nunca aparecem
Mas que reconhecem
Tom de voz diferente
As pontas dos dedos, quentes
E zupt!
Vêm correndo à tona
Fechar-me toda em medo
Como se eu fosse brinquedo
Que se monta e desmonta.
Mas se tiver paciência
Ciência
Jogar fora o relógio
Inventar um tal ócio
Desmarcar compromisso
Faça mesmo só isso:
Fique
Fique com seu tom de voz
Com sua vontade
Faça assim, deixa ir tarde
O nosso deixar estar.
Fica o tempo que for
Deixa eu me acostumar
Deixa que eu abra minhas folhas
Uma a uma, bem devagar
E entenda, só de olhar
Que eu não sou santa,
Nem doidivana:
Sou planta.
Então seja feito menino pequeno
Com livro de Maurice Druon
Deitado sereno na rede
Dê-me seus olhos, seu ar, seu som
Chuva fina e sonho bom
Menino do dedo verde.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Primeiro de Abril



Hoje estou brava

Como deveria estar

Esbofeteio o ar

Dou baita bronca

Passo da conta:

Então nem vem

Não me faça de tonta

Não me conte segredos

Que já contou a dez mil.

Não me chame de lua, de tua

Não me ponha num álbum

De mocinhas passadas

Mas que coisa mais vil,

além de brega, abobada

Grande palhaçada

Do seu ego viril.

Em que planeta você vive

Que tem tanta lua,

Onde já se viu?

Você pra mim não existe

Você só pode ser mentira

Tipo paz na Caxemira

Um belo primeiro de abril.


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( O Curinga é arte de uma mocinha americana chamada Jule Marie Smith)

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Requiem para um Par de Chinelas




Havia então um par de chinelas meio velhas que Marianinha não mais queria. Mas eram uma chinelas muito simpáticas mesmo, tinham até flor enfeitando, umas graças. A mocinha, triste que só, ficou lembrando do dia em que as comprou, último verão. Saiu andando pela praia com aquelas chinelas novas que os pés ainda sentiam estranhas e rígidas, mas que os olhos adoravam. A flor cor-de-rosa fazia um par bonito com o pé moreno, ela achava. E não era só ela que achava. Também achava isso o menino pescador amarrando o barco à tardinha. O menino achou tanto que ela notou, e começou a reparar que os pés dela combinavam com os dele, descalços, andando juntos na areia dourada de pôr do sol. Também combinava com as chinelas – achava o menino – uma correntinha pra tornozelo de conchas tingidas de azul que ele mesmo havia feito. E depois de um tempo concluíram que as sandálias combinavam também com histórias antigas dele e dela, com sorrisos sem-graça, olhos brilhando, sorvete, algodão doce e beijo na boca.

Mas esse verão a menina estava achando de verdade que com nada as sandálias calhavam. Provava todas as roupas e era tudo um horror. Nem carregá-las nas mãos na beira da praia (pras ondas não molharem a palhinha) tinha o mesmo charme mais. Marianinha ficou mesmo muito irritada, comprou num arroubo umas sandálias de borracha preta muito insossas, pôs no pé e pronto: qualquer estampa servia. As chinelas de flor quase jogou no lixo, mas não. Quase deu pr’uma prima, mas tampouco. Fez melhor: Deixou-as em cima de uma pedra, numa pose bem bonita, pra quem as encontrasse e achasse que com seu pé combinasse mais, ou pra passarinho fazer ninho arrancando a palhinha, ou pra quaisquer que fossem os desígnios do vento. Foi embora com os pés enlutados, chorando lagriminhas azuis.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A Formiga e o Sonho


Formiga carregadeira
Na fila pro formigueiro
Anda até menos ligeiro
Pra tentar disfarçar das demais
O pequeno tesouro que traz:
Na fila ali tem formiga
levando farelo de pão
Logo atrás uma bem gorda
Com um caroço de canjicão
Tem também umazinha
Com uma lasca de chocolate
E sobre a penúltima brilha
um teco de bala escarlate
Mas a última ficou zureta
Depois de ver borboleta
Cor de sol, de quindim
Voando assim e assim
Quis com força aquilo pra ela
Dançar, espiar as janelas
E não hesitou quando viu
Caída, uma pétala amarela -
Vestiu-a e saiu sonhando
Seus sonhos de Cinderela.

Paisagem Noturna





A noite vem roubando as cores
Roubando sons
Distribuindo solidez às coisas.
A rua sépia lá embaixo
Brilha de tão concreta
Vazia e sem propósito:
Bastando-se.
Às três da madrugada queria sentir
A rua gelada sob meus pés
Um pé em cada faixa amarela.
Fico parte da cena e do silêncio.
Bastando-me.

Receita pg. 64



Receitas da D. Euzilábia.

Pg. 64

Chocolate anti-rugas

Se meu faminto leitor amigo
sofre de mau-humor antigo
vive de cenho franzido
por mal desconhecido
Pare de olhar pro umbigo!
Concentre-se em toda a pança
Que olhe, há esperança
Pra essa sua carranca:
(confie na minha vivência)
Procure chocolate na venda
Aquele de sua preferência
(escolha uma barra gigante
Com caramelo, ao leite ou crocante)
Mas não, não abra agora
essa caixa de pandora
invertida
Faça isso, colega
da forma mais divertida:
Ache uma roda de boleba
Vá dando um pedaço
Pra cada moleque de pé descalço
Depois parta no encalço
daquele companheiro querido
da mocinha bonita de vestido
do colega meio esquecido
até do chefe que te aluga o ouvido.
Quando sobrar só um tiquinho
Um naco bem pequenininho
Vai notar, com efeito
Que já está mais que satisfeito.
Mas mande pra dentro, tanto faz
Chocolate nunca é demais.

Mas se assim mesmo continuar
Com essa cara de tacho
E olho de peixe-morto
Vai te ajudar mais, eu acho
Ir pra página 88.

Receita pg. 52



Receitas da dona Euzilábia

pg. 52

Café da manhã porreta!

Pro dia começar bem
Pegue um pão com manteiga
A caneca de café preto
Escancare a janela, ponha ali no beiral
Vai dar bom dia pra casa
lavar rosto, espiar o jornal,
mas não tire o pijama, não!
Volte nele mesmo, sente-se no chão
E vá comendo devagar aquele pão-de-sol
bebendo aquele café fresco, mas requentado.
Se não funcionar
(ó, cabra enfadado)
pule agora mesmo
pra página 64.

Menina no Varal




Nunca

Nunquinha na vida

Eu havia pensado coisa tão louca

Quanto um varal,

daqueles mesmo (náilon, pregador)

Servindo pra coisa além de pôr roupa

Tapete, bicho de pelúcia, cobertor.

Pois que acredite quem quiser

Porque não foi engano

E nem tentem me convencer

De que era boneca de pano.

Convencer a mim, leitora de Lobato

Habituada com a Emília

Vai ser ato malfadado:

Sei ver bem as costuras

Cabelo de lã, sorriso de linha

Não é loucura

Teatro, filme

Nem pantomima

Aquilo era – eu juro – uma menina.

Menina bem pequena, é verdade

Mas alguma explicação tem:

Ela deve ter encolhido

Pra não causar alarido

Pra caber certinho nas mãos

Ou no coração de alguém.

Ou se encolheu foi por dor

Que só ela mesmo conhece

Pois vou dizer do que acho

Que essa menina carece:

Carece de esquecer essa mão

Que a pendurou ali na corda

E se sacudir um pouquinho

Que o grampo logo se solta.

Se ralar joelho no chão

Assopra, limpa com a mão

E joga na lata de lixo

Ponto de interrogação.

Vida é certeza, menina.

Não do que vai vir, mas do agora.

Se fica olhando pro lado,

O olho buscando o passado

Ou tá vivendo errado

Ou deixando vid’embora.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Partitura


Corre
Pega lá o violão
Senta aqui comigo, no chão
Que os passarinhos tão compondo
Um ao lado do outro nos fios
Uma música de crepúsculo.
Juro que não interrompo
Não mexo um só músculo
No meio dessa epifania
Dessa só nossa unção.
Aliás, perdoe apenas
Um músculo involuntário
Esse baderneiro otário
Genioso coração.

Pensa que eu não sei.


Clarice é uma moça bonita demais. E por ela um amor de deixar estar. Clarice não é hermética nada, ela diz que se entende, ela fecha os olhos na varanda com plantas no murinho, só pra sentir a brisa e balançar-se pra frente e pra trás feito flor. Essa última parte eu inventei porque é o que eu faria. E se ela pode falar sem a menor cerimônia das coisas que sinto, eu também posso, Clarice, me dá licença, falar de você. Porque se seus olhos amendoados são janelas de vidro fosco pro seu coração, você de olhos fechados me dá assim uma ternura, você fica parecendo alguém que eu conheço e apalpo. É que por trás desse garbo de Greta, desse batom encarnado, o que tem é uma cara de estar gostando do vento, ou de cheiro de coisa quente no prato, coisa que também sinto, algo que também faço.

Sete da Manhã















Quando em vez, eu tenho esse sonho estranho em que sou um pé de cássia-rosa.

E nos dias em que me sonho árvore, acordo inteira vontade de que façam ninho no meu ombro. Agüento firme o ardor das querências de dar de respirar, comer, morar, de fazer sombra, explodir em frutos e nunca ter que ir. Fico devaneando passar por todas as estações do porvir, sem perder nada da essência de ser, simplesmente, árvore - e suspiro por aí cada beleza erradiça: uma folha amarelando, um galho seco, um fruto meio comido enegrecendo já.

Nesses dias chega dói acordar: espeta por dentro um amor-árvore cheio de raízes. E iludem-me, sonsos, os amores-pássaro, os amores-chuva, os amores-vento. E é bem nessas horas que penso:

Que é que ficaria lento, bento feito relicário guardando coração?

Sei não. Mas acho que é logo às sete da manhã que o mistério se encerra:
Nos dias assim, acordo com as mãos, as plantas dos pés, o vão sob as unhas
Castanhos de terra.

Blusa de Frio


Blusa de frio
Em dia de chuva
É feita pra dar abraço
Daqueles de neles se perder
E é só essa a razão de ser.
Blusa de frio em menino
Cor escura, cheiro de amaciante
Invadindo as narinas, bailarino
Abraço rente, autocolante.
Vá embora não, seu tratante
Que ir embora assim é ultrajante
É pedante, desinteressante!
É desodorante
Esse cheiro de brisa?
E esse cheiro seu?
De terra, mas uma terra só sua
De lua
Cheiro de coisa vã
Avelã
Sumo de maçã
Ah, chega mais, minha parede de lã
Que lhe faço uma proposta
Livre comércio
Escambo
Do meu gosto de canela
Pelo seu de hortelã.
Só não troque o caminho
Não me olhe de canto
Que isso não se faz, menino
Que isso não é troca sã:
É só seu jeito cretino
De me deixar nessa chuva fria
Casaco fino, mãos vazias
Tiritando de febre malsã.

Uma Carta






É assim que lhe conto

Que entrego meu coração.

Voz parece que vem arranhando pela garganta,

E acho que nunca me acostumei com ela.

Nasci mal-acostumada.

Devo ter tido preguiça de chorar,

Ou devo ter chorado tanto

Com tão pouco tamanho

Que me cansei cedo.

Me cansei.

Tinta desliza fácil

E letra é desenho tão bonito,

Que me inspira a dizer mais.

Digo e vou dizendo pra sempre

Feito rio sinuoso cortando um país

Continente

O mundo

E paro só por causa do pulso

Esse fraco

Que tem pulso-forte sobre mim

Sobre minhas vontades.

Dentro de mim o que guardo

É um pedido de perdão aos que precisaram da minha voz

E não tiveram.

E inveja de quem diz com tanta eloqüência:


“não”

“te ajudo”

“é o seguinte”

“sim”

“te amo”

“fica mais um pouco”

“mas me explique melhor”


Está tudo dentro de mim.

Mas nem sempre há caneta e papel.

Só queria escrever com os dedos

Sobre a pele de alguém.

Palavra



Palavra
Não é só som
Ou tinta
Palavra vem brotando
Por baixo da pele e brinca
De invisível
Se faz indizível no franzir do cenho
No suave desenho
De uma mão no ar.
Palavra está no aceno
Que diz adeus, sem voz ou risco
Ela é o riso alto ou quieto, o aviso
De tanto amor ou frio
Estampada no arrepio
De um beijo ou de entrar no mar.
Palavra é o próprio ponto
E vírgula pra respirar.
Nota musical ascendente
Que a menina de um ano e meio
Depois de tanto bilabiar
Usa, enfim, pra perguntar.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A um Passarim



Passarim
Diz o porquê de ser assim
De acreditar no amor, dá-lo a mim
E depois levantar vôo
Sozinho
Arredio
Pra me deixar no meio-fio
Frio
Pra correr longo e amplo
Rio
E desembocar n’outro mar
Dar para outros seu cantar.
Não sei pra quê esses olhinhos
De quem é doido por carinho
De pedir atenção, conversa boa
Se daqui a pouco você entoa
Uma notinha já manjada
E voa
Rouba a beleza do meu dia
Vai cantar em outra freguesia.
Ah, passarim, ai de mim
Eu, que vivo dizendo sim
A esse amor mudo
Amor-minuto
Que nem sei se ainda existe
Se já virou modinha triste
Já faz tempo...
Virei chiste?
Virei gaiola, arapuca?
Que idéia é essa, que machuca?
Eu, que queria ser céu
Nuvem, sol, flor, açúcar
Queria dia de cachoeira
Queria perder eira e beira.
Mas tá certo, passarim
Você bebe, come, arrulha
Cata um galho de alecrim
Canta um cheiro de jasmim
Bate as asas
E fim.

domingo, 13 de abril de 2008

Por Motivos de Sol.






Pois bem, agora vê:
Me ocorre aqui uma vontade
Urgente de estar com você
No amanhecer ou sob sol a pino,
E escrever sobre suas costas quentes:
Menino,
Que o sol acentue sua luz
Que seja carinho sobre seu corpo
Que te aqueça em amor, e tanto bem
Amém.
Deixa eu escrever em você, vai
Toda paz que quero lhe dar,
As preces pra lhe proteger,
Escrevo em sonetos, haicais.
Por trás da orelha esquerda
Desenho um galhinho de arruda
E faço uma poesia concreta
Que desce serpenteando da nuca,
E vai pela sua espinha
Pela sua vida.
Escrevo uma bossinha no seu ombro
Pouso um passarinho nele
Com colcheia e semínima saindo do bico
Sem bemóis, bem leve
Que a canção há de ser alegre.
Nas suas espáduas
Desenho um par de asas.
As asas que eu sei que você tem.
Porque é sempre esse ruflar
Esse ruflar, quando penso em você.
Esse vento no rosto
Esse gosto de mar.
E por isso mesmo, suas pernas,
Eu encho de escamas
Pequenininhas
Coloridas de azul-infinito.
E cubro suas mãos de folhas
Do verde mais bonito.
Os espaços sobrando
Preencho com as espirais
Do seu mistério.
E quando eu chegar ao seu peito
E a tinta já tiver acabado
Tomo seu coração num beijo
E fico ali ao seu lado
Às margens
De você, rio
Amazonas, Tejo.

À outra D. Maria de Lourdes





Os automóveis

Não importam mais aos olhos

Da minha Maria de Lourdes.

O que importa é lutar com os ouvidos falhos

Pra escutar os suspiros imóveis

Captar o diálogo afoito

Dos amantes da novela das oito.

O que importa é receber beijo de neta

Já grande:

Não há mais máquina de costura,

Fazer vestido de boneca

Desbravar mato atrás de bambuzinho fino

Com faquinha de pão

Improvisar canudo

Soprar bolha de sabão.

Por isso essas mãos de veludo

Da falta de lida atual.

O cheiro da lembrança da minha Maria de Lourdes

É o daquele bolo de chocolate

Que nunca consegui fazer igual.

E o gosto da infância com ela

É de pão torrado com mate

É de biscoito integral

Sete, sempre

Prato e caneca de louça

Em frente à televisão.

Nunca entendi, aliás,

aquela sala fresca

Dentro daquele dia quente.

A casa toda era um alívio só

Oásis, templo, paraíso

Com seus potes de biscoito frito

Suas telas pra não deixar mosquito

Entrar de jeito nenhum.

Quiosque pra mim era só um:

E se chamava Tiosque

No português inventivo

Da minha Maria de Lourdes:

Lá entrava caixa de madeira,

Saía descanso pra panela,

trava de janela

Escora pra geladeira

Quase sempre torta

Saíam também uns bonequinhos

Que viravam cambalhota

E que meu vô me dava

Pintados de todas as cores.

No fim do dia D. Maria reclamava

De suas diversas dores

“Ah, minha fia, ando tão piançada

Acho que é coisa da idade”.

Dizia ela em toda

Sua simplicidade.

Dona Maria de Lourdes

Ainda espera por mim

Espera até tarde

Eu chegar pra dar boa noite.

E responde, repetido:

Deus lhe guarde.

Deus lhe guarde.



Conversa fiada












Tarde fresca. Um silêncio de ouvir chinelo arrastando na calçada e o som do rio, que ninguém mais ouve, pois que virou barulho contínuo inerente à vida de cá (feito bem coração batendo) e carece de atenção que só surge de uma tarde assim pra ser redescoberto. Então, no meio dessa tarde aí, dois passarinhos levando um biquinho de prosa:


- Como vai a família, compadi?


- Vai bem, vai bem. Ontem o caçula soltou um ré bonito de doer.


- Ô, que bom. Já a patroa minha anda tão bemolrenta, não sei bem o que faço. Não gosta dos meus andaços, mas já disse pra ela que num sou ararinha-azul, não. Mas que idéia dessa fêmea! Gosto da minha vida boêmia. Sou bico-de-lacre, beijo-de-moça, moça gosto de beijar.


- É, meu compadi, não sei o que te falar. Mas mulher é assim mesmo, e eu gosto da minha patroa. Levo comida boa, sábado a gente voa à toa, deixa os pequenos com a vó.


- Eu também gosto da minha, às vezes sinto dó. Mas ah, a Mariazinha, ô, rolinha fogosa. E a Carminha, a beija-flor? Ai, aquela é tão esbelta, e vive com um cheiro de rosa...


- É, tô te entendendo...


E foi só isso que ouvi. Depois ficaram ali, pensando seus pensamentos.

Etimologia



Amor
veio da palavra vento
através de um longo processo
etimológico
de derivações
aglutinações
justaposições
interlocuções
e segundas intenções.
Deu-se assim, bem lento:
Vento
Senteovento
Sentimento
Senteador
Sentidor
Hácalor
Ventilador
Acalento
Ardendo
Dentro
Rebento
Redentor
Ventorrede
Ventoflor
Hásede
Hámor.
Foi-se agá mudo
acento
pudor.

(hoje amor e vento
os dois levantam saia
da menina que se cora
vermelho bordô)