sábado, 10 de dezembro de 2011

Tirésias


Não podiam se entender. Sentia que havia dentro dela uma solidão que ele nunca conseguiria tocar, por mais que ela quisesse deixá-lo. Ele, que sabia de tantas coisas, tinha as mãos grandes e curiosas demais para descobertas delicadas. Os dedos viviam buscando, tudo ao seu toque se tornava objeto de detalhadíssimas e pegajosas inspeções. Ouvia coisas ainda não-ditas, sabia que amanhã iria chover somente pelo cheiro que tinha o ar quando a noite atingia o seu mais escuro. Da mesma maneira, conseguia sentir o odor de qualquer descrença. Media a respiração dela, adivinhava quando se acendia qualquer centelha de dúvida. Antecipava-se a qualquer palavra, declarava com voz maleável:

“Mas é certo que te quero. Como é vermelha esta maçã, querida.”

Ele apalpava a fruta de maneira exagerada, as pontas dos dedos brancas com a intensidade da pressão. Ele conhecia, sobre a pele, a textura da cor vermelha. Ela, por sua vez, olhava a fruta com as feições de quem tenta resolver mistérios. Desviou os olhos e suspirou, vencida, a expressão agora inescrutável. Em momentos como esse, ele lhe tomava a mão entre as suas. Ele sabia que o tato sempre os salvava.

Ele, que sabia de tantas coisas. Como o fato de ela gostar tanto do outono pela abundância do amarelo. Para ela, essa era a verdadeira cor das árvores. Enquanto caminhavam, coletava com cuidado e sofreguidão o amarelo nas calçadas para conservá-lo entre páginas. Ele, divertido, sorria do gesto.

No verão, porém, ela não entendia aquela tonalidade acinzentada das árvores. Nunca viu um número verde dentro de um círculo vermelho. Nunca, na verdade, havia visto uma maçã.

Disso, ele não sabia.



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Texto publicado na edição de 5º aniversário da revista Cachoeiro Cult.

Foto por Kami McKeon

quarta-feira, 2 de março de 2011

Poussière, Lumière (ou da poeira em fachos de luz)




Dizem que Chade é o coração morto da África. Localizado no centro-norte do continente e sem comunicação com o mar, apresenta um clima desoladamente desértico. Lá se falam, oficialmente, o francês e o árabe, e a religião mais praticada é o islã. É o mais populoso e o mais pobre dos países que compunham a antiga África Equatorial Francesa. O que me liga a Chade é apenas o nome Liane Nimrod, a impressão de calor intenso e a cor ocre-alaranjada.

Nimrod nasceu lá, em 1959, apesar de depois ter se mudado para Amiens, na França. É doutor em filosofia, ensaísta, poeta, romancista. Em 2004 lançou um livro de poesias chamado “En Saison ”. E foi assim: naquele três de junho de sol, em Pistóia, na Itália, Nimrod autografou um exemplar para seu amigo brasileiro Carlos, bendizendo as circunstâncias do reencontro deles. Anotou no rodapé da página todos os seus contatos e endereço. Não deixemos de nos ver mais uma vez. Sim, com certeza, obrigado. Sucesso. Obrigado.

Sorrisos, breves apertos de mãos, e seguiu-se a fila de pessoas de rostos ignotos.

Recriei a cena sem nenhum compromisso com a realidade, não estava lá. Nunca estive na Europa, muito menos em Pistóia. Mas tenho a pista, o fruto.

Preciso partir da explicação de que o papel sempre me foi uma espécie de fixação. A textura, o cheiro, as cores. O cheiro, principalmente. O cheiro viciante do papel novo. As livrarias, cujo ar eu respirava como se fosse montanhesco - fundos, longos tragos. Aquelas lombadas coloridas e brilhantes, imaculadas. Tão bom. Livro era assunto que me dava muito ciúme. Manias de encapar com plástico transparente, colar etiquetas. Foi longo o processo que me levou ao saudável desprendimento pra lograr ser bem sucedida no exercício de emprestar. A data de devolução de um livro precisa ser um mistério insolúvel.

Longo processo. Que me levou a perder os cuidados em virar páginas e o medo de amassar as capas dentro das bolsas, e a amar as máculas que deixam a leitura. Passei a gostar indecentemente delas, dobrar orelhas, grifar trechos que me faziam morrer de tanto viver naquele momento exato. Iluminações. Subverti-me até chegar aos sebos.

Ah, os sebos. O ar que se respira neles é bem diferente do das livrarias. É mais denso e passa áspero pelas narinas nas primeiras vezes. Pode ser que seja a poeira, os ácaros, os ocasionais fungos. Prefiro chamar de história, poeira num facho de luz, revoluteando com o susto da descoberta. Pega-se nas mãos um mundo que já foi vivido no mínimo uma vez antes, todos os vestígios dispostos entre as páginas, nas manchas da capa, espremidos entre as entrelinhas da própria história exposta em tinta de gráfica: dedicatórias, trechos sublinhados, observações, flores, fotos esquecidas, bilhetes antigos, Chade, Amiens, Pistóia, Nimrod e Carlos todos quietos no espaço concebível entre dois outros livros de uma estante abarrotada de livros em Francês. Ao lado desses, dezenas de outros. Centenas de outros acima, abaixo, atravessados em qualquer folga de espaço. Atravessados no tempo, todos os outros milhões de dias e sentimentos dormentes, esperando.

Se andar melhorando demais em desprendimentos, um dia subverto-me ao ponto da perdição. Ponho meus dias e sentimentos pra esperar em janelas, bancos de praça, galhos de árvore. Feito mulheres assunteiras, pássaros. Um dia, em outro país, eu deixo Nimrod esperando num assento de ônibus e saio pensando em Carlos.



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