quarta-feira, 30 de abril de 2008

Sobre a Raiva



Lista de coisas que dão raiva:

Prender o dedo na janela
Queimar mão na panela
Ter um roxo na canela
Manchar minha saia amarela
Ver você com ela.

Ódio, não.

Ódio paralisa, faz a vida revirar em dor.

Ódio anuvia o juízo.

Já a raiva faz isso:

Recolher o dedo entre os lábios
Usar uma pomadinha
Recorrer à calça jeans
Tentar receita de vó
Virar o rosto e seguir em frente
E só.




(02/08)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Canjicas




Quando eu era pequenininha

Filha de Batata

(batatinha)

Barriga saliente

Pé na calçada quente

Cambalacho colorido na orelha

Minha vó sentava na varanda

Descascava mexerica

E eu me ria com as proezas dos moleques

Com as cores das pipas

E minha vó dizia:

Óia as canjicas

Essas canjicas!

Vou pegar todas elas

jogar na panela

fazer canjicão

com coco e canela.



Eu me ria mais um pouco

(uma canjica cá em baixo

outra lá em riba)

ela fazia que levantava

pegava a chinela velha

e eu voava pela janela.

Apelo



Devagar com o andor
Que minh’alma é de dormideira
Ela se fecha em dor
Às vezes, eu queira ou não queira
É que é uma falta de cores
Anteriores
Uns dissabores
Que quase nunca aparecem
Mas que reconhecem
Tom de voz diferente
As pontas dos dedos, quentes
E zupt!
Vêm correndo à tona
Fechar-me toda em medo
Como se eu fosse brinquedo
Que se monta e desmonta.
Mas se tiver paciência
Ciência
Jogar fora o relógio
Inventar um tal ócio
Desmarcar compromisso
Faça mesmo só isso:
Fique
Fique com seu tom de voz
Com sua vontade
Faça assim, deixa ir tarde
O nosso deixar estar.
Fica o tempo que for
Deixa eu me acostumar
Deixa que eu abra minhas folhas
Uma a uma, bem devagar
E entenda, só de olhar
Que eu não sou santa,
Nem doidivana:
Sou planta.
Então seja feito menino pequeno
Com livro de Maurice Druon
Deitado sereno na rede
Dê-me seus olhos, seu ar, seu som
Chuva fina e sonho bom
Menino do dedo verde.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Primeiro de Abril



Hoje estou brava

Como deveria estar

Esbofeteio o ar

Dou baita bronca

Passo da conta:

Então nem vem

Não me faça de tonta

Não me conte segredos

Que já contou a dez mil.

Não me chame de lua, de tua

Não me ponha num álbum

De mocinhas passadas

Mas que coisa mais vil,

além de brega, abobada

Grande palhaçada

Do seu ego viril.

Em que planeta você vive

Que tem tanta lua,

Onde já se viu?

Você pra mim não existe

Você só pode ser mentira

Tipo paz na Caxemira

Um belo primeiro de abril.


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( O Curinga é arte de uma mocinha americana chamada Jule Marie Smith)

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Requiem para um Par de Chinelas




Havia então um par de chinelas meio velhas que Marianinha não mais queria. Mas eram uma chinelas muito simpáticas mesmo, tinham até flor enfeitando, umas graças. A mocinha, triste que só, ficou lembrando do dia em que as comprou, último verão. Saiu andando pela praia com aquelas chinelas novas que os pés ainda sentiam estranhas e rígidas, mas que os olhos adoravam. A flor cor-de-rosa fazia um par bonito com o pé moreno, ela achava. E não era só ela que achava. Também achava isso o menino pescador amarrando o barco à tardinha. O menino achou tanto que ela notou, e começou a reparar que os pés dela combinavam com os dele, descalços, andando juntos na areia dourada de pôr do sol. Também combinava com as chinelas – achava o menino – uma correntinha pra tornozelo de conchas tingidas de azul que ele mesmo havia feito. E depois de um tempo concluíram que as sandálias combinavam também com histórias antigas dele e dela, com sorrisos sem-graça, olhos brilhando, sorvete, algodão doce e beijo na boca.

Mas esse verão a menina estava achando de verdade que com nada as sandálias calhavam. Provava todas as roupas e era tudo um horror. Nem carregá-las nas mãos na beira da praia (pras ondas não molharem a palhinha) tinha o mesmo charme mais. Marianinha ficou mesmo muito irritada, comprou num arroubo umas sandálias de borracha preta muito insossas, pôs no pé e pronto: qualquer estampa servia. As chinelas de flor quase jogou no lixo, mas não. Quase deu pr’uma prima, mas tampouco. Fez melhor: Deixou-as em cima de uma pedra, numa pose bem bonita, pra quem as encontrasse e achasse que com seu pé combinasse mais, ou pra passarinho fazer ninho arrancando a palhinha, ou pra quaisquer que fossem os desígnios do vento. Foi embora com os pés enlutados, chorando lagriminhas azuis.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A Formiga e o Sonho


Formiga carregadeira
Na fila pro formigueiro
Anda até menos ligeiro
Pra tentar disfarçar das demais
O pequeno tesouro que traz:
Na fila ali tem formiga
levando farelo de pão
Logo atrás uma bem gorda
Com um caroço de canjicão
Tem também umazinha
Com uma lasca de chocolate
E sobre a penúltima brilha
um teco de bala escarlate
Mas a última ficou zureta
Depois de ver borboleta
Cor de sol, de quindim
Voando assim e assim
Quis com força aquilo pra ela
Dançar, espiar as janelas
E não hesitou quando viu
Caída, uma pétala amarela -
Vestiu-a e saiu sonhando
Seus sonhos de Cinderela.

Paisagem Noturna





A noite vem roubando as cores
Roubando sons
Distribuindo solidez às coisas.
A rua sépia lá embaixo
Brilha de tão concreta
Vazia e sem propósito:
Bastando-se.
Às três da madrugada queria sentir
A rua gelada sob meus pés
Um pé em cada faixa amarela.
Fico parte da cena e do silêncio.
Bastando-me.

Receita pg. 64



Receitas da D. Euzilábia.

Pg. 64

Chocolate anti-rugas

Se meu faminto leitor amigo
sofre de mau-humor antigo
vive de cenho franzido
por mal desconhecido
Pare de olhar pro umbigo!
Concentre-se em toda a pança
Que olhe, há esperança
Pra essa sua carranca:
(confie na minha vivência)
Procure chocolate na venda
Aquele de sua preferência
(escolha uma barra gigante
Com caramelo, ao leite ou crocante)
Mas não, não abra agora
essa caixa de pandora
invertida
Faça isso, colega
da forma mais divertida:
Ache uma roda de boleba
Vá dando um pedaço
Pra cada moleque de pé descalço
Depois parta no encalço
daquele companheiro querido
da mocinha bonita de vestido
do colega meio esquecido
até do chefe que te aluga o ouvido.
Quando sobrar só um tiquinho
Um naco bem pequenininho
Vai notar, com efeito
Que já está mais que satisfeito.
Mas mande pra dentro, tanto faz
Chocolate nunca é demais.

Mas se assim mesmo continuar
Com essa cara de tacho
E olho de peixe-morto
Vai te ajudar mais, eu acho
Ir pra página 88.

Receita pg. 52



Receitas da dona Euzilábia

pg. 52

Café da manhã porreta!

Pro dia começar bem
Pegue um pão com manteiga
A caneca de café preto
Escancare a janela, ponha ali no beiral
Vai dar bom dia pra casa
lavar rosto, espiar o jornal,
mas não tire o pijama, não!
Volte nele mesmo, sente-se no chão
E vá comendo devagar aquele pão-de-sol
bebendo aquele café fresco, mas requentado.
Se não funcionar
(ó, cabra enfadado)
pule agora mesmo
pra página 64.

Menina no Varal




Nunca

Nunquinha na vida

Eu havia pensado coisa tão louca

Quanto um varal,

daqueles mesmo (náilon, pregador)

Servindo pra coisa além de pôr roupa

Tapete, bicho de pelúcia, cobertor.

Pois que acredite quem quiser

Porque não foi engano

E nem tentem me convencer

De que era boneca de pano.

Convencer a mim, leitora de Lobato

Habituada com a Emília

Vai ser ato malfadado:

Sei ver bem as costuras

Cabelo de lã, sorriso de linha

Não é loucura

Teatro, filme

Nem pantomima

Aquilo era – eu juro – uma menina.

Menina bem pequena, é verdade

Mas alguma explicação tem:

Ela deve ter encolhido

Pra não causar alarido

Pra caber certinho nas mãos

Ou no coração de alguém.

Ou se encolheu foi por dor

Que só ela mesmo conhece

Pois vou dizer do que acho

Que essa menina carece:

Carece de esquecer essa mão

Que a pendurou ali na corda

E se sacudir um pouquinho

Que o grampo logo se solta.

Se ralar joelho no chão

Assopra, limpa com a mão

E joga na lata de lixo

Ponto de interrogação.

Vida é certeza, menina.

Não do que vai vir, mas do agora.

Se fica olhando pro lado,

O olho buscando o passado

Ou tá vivendo errado

Ou deixando vid’embora.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Partitura


Corre
Pega lá o violão
Senta aqui comigo, no chão
Que os passarinhos tão compondo
Um ao lado do outro nos fios
Uma música de crepúsculo.
Juro que não interrompo
Não mexo um só músculo
No meio dessa epifania
Dessa só nossa unção.
Aliás, perdoe apenas
Um músculo involuntário
Esse baderneiro otário
Genioso coração.

Pensa que eu não sei.


Clarice é uma moça bonita demais. E por ela um amor de deixar estar. Clarice não é hermética nada, ela diz que se entende, ela fecha os olhos na varanda com plantas no murinho, só pra sentir a brisa e balançar-se pra frente e pra trás feito flor. Essa última parte eu inventei porque é o que eu faria. E se ela pode falar sem a menor cerimônia das coisas que sinto, eu também posso, Clarice, me dá licença, falar de você. Porque se seus olhos amendoados são janelas de vidro fosco pro seu coração, você de olhos fechados me dá assim uma ternura, você fica parecendo alguém que eu conheço e apalpo. É que por trás desse garbo de Greta, desse batom encarnado, o que tem é uma cara de estar gostando do vento, ou de cheiro de coisa quente no prato, coisa que também sinto, algo que também faço.

Sete da Manhã















Quando em vez, eu tenho esse sonho estranho em que sou um pé de cássia-rosa.

E nos dias em que me sonho árvore, acordo inteira vontade de que façam ninho no meu ombro. Agüento firme o ardor das querências de dar de respirar, comer, morar, de fazer sombra, explodir em frutos e nunca ter que ir. Fico devaneando passar por todas as estações do porvir, sem perder nada da essência de ser, simplesmente, árvore - e suspiro por aí cada beleza erradiça: uma folha amarelando, um galho seco, um fruto meio comido enegrecendo já.

Nesses dias chega dói acordar: espeta por dentro um amor-árvore cheio de raízes. E iludem-me, sonsos, os amores-pássaro, os amores-chuva, os amores-vento. E é bem nessas horas que penso:

Que é que ficaria lento, bento feito relicário guardando coração?

Sei não. Mas acho que é logo às sete da manhã que o mistério se encerra:
Nos dias assim, acordo com as mãos, as plantas dos pés, o vão sob as unhas
Castanhos de terra.

Blusa de Frio


Blusa de frio
Em dia de chuva
É feita pra dar abraço
Daqueles de neles se perder
E é só essa a razão de ser.
Blusa de frio em menino
Cor escura, cheiro de amaciante
Invadindo as narinas, bailarino
Abraço rente, autocolante.
Vá embora não, seu tratante
Que ir embora assim é ultrajante
É pedante, desinteressante!
É desodorante
Esse cheiro de brisa?
E esse cheiro seu?
De terra, mas uma terra só sua
De lua
Cheiro de coisa vã
Avelã
Sumo de maçã
Ah, chega mais, minha parede de lã
Que lhe faço uma proposta
Livre comércio
Escambo
Do meu gosto de canela
Pelo seu de hortelã.
Só não troque o caminho
Não me olhe de canto
Que isso não se faz, menino
Que isso não é troca sã:
É só seu jeito cretino
De me deixar nessa chuva fria
Casaco fino, mãos vazias
Tiritando de febre malsã.

Uma Carta






É assim que lhe conto

Que entrego meu coração.

Voz parece que vem arranhando pela garganta,

E acho que nunca me acostumei com ela.

Nasci mal-acostumada.

Devo ter tido preguiça de chorar,

Ou devo ter chorado tanto

Com tão pouco tamanho

Que me cansei cedo.

Me cansei.

Tinta desliza fácil

E letra é desenho tão bonito,

Que me inspira a dizer mais.

Digo e vou dizendo pra sempre

Feito rio sinuoso cortando um país

Continente

O mundo

E paro só por causa do pulso

Esse fraco

Que tem pulso-forte sobre mim

Sobre minhas vontades.

Dentro de mim o que guardo

É um pedido de perdão aos que precisaram da minha voz

E não tiveram.

E inveja de quem diz com tanta eloqüência:


“não”

“te ajudo”

“é o seguinte”

“sim”

“te amo”

“fica mais um pouco”

“mas me explique melhor”


Está tudo dentro de mim.

Mas nem sempre há caneta e papel.

Só queria escrever com os dedos

Sobre a pele de alguém.

Palavra



Palavra
Não é só som
Ou tinta
Palavra vem brotando
Por baixo da pele e brinca
De invisível
Se faz indizível no franzir do cenho
No suave desenho
De uma mão no ar.
Palavra está no aceno
Que diz adeus, sem voz ou risco
Ela é o riso alto ou quieto, o aviso
De tanto amor ou frio
Estampada no arrepio
De um beijo ou de entrar no mar.
Palavra é o próprio ponto
E vírgula pra respirar.
Nota musical ascendente
Que a menina de um ano e meio
Depois de tanto bilabiar
Usa, enfim, pra perguntar.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A um Passarim



Passarim
Diz o porquê de ser assim
De acreditar no amor, dá-lo a mim
E depois levantar vôo
Sozinho
Arredio
Pra me deixar no meio-fio
Frio
Pra correr longo e amplo
Rio
E desembocar n’outro mar
Dar para outros seu cantar.
Não sei pra quê esses olhinhos
De quem é doido por carinho
De pedir atenção, conversa boa
Se daqui a pouco você entoa
Uma notinha já manjada
E voa
Rouba a beleza do meu dia
Vai cantar em outra freguesia.
Ah, passarim, ai de mim
Eu, que vivo dizendo sim
A esse amor mudo
Amor-minuto
Que nem sei se ainda existe
Se já virou modinha triste
Já faz tempo...
Virei chiste?
Virei gaiola, arapuca?
Que idéia é essa, que machuca?
Eu, que queria ser céu
Nuvem, sol, flor, açúcar
Queria dia de cachoeira
Queria perder eira e beira.
Mas tá certo, passarim
Você bebe, come, arrulha
Cata um galho de alecrim
Canta um cheiro de jasmim
Bate as asas
E fim.

domingo, 13 de abril de 2008

Por Motivos de Sol.






Pois bem, agora vê:
Me ocorre aqui uma vontade
Urgente de estar com você
No amanhecer ou sob sol a pino,
E escrever sobre suas costas quentes:
Menino,
Que o sol acentue sua luz
Que seja carinho sobre seu corpo
Que te aqueça em amor, e tanto bem
Amém.
Deixa eu escrever em você, vai
Toda paz que quero lhe dar,
As preces pra lhe proteger,
Escrevo em sonetos, haicais.
Por trás da orelha esquerda
Desenho um galhinho de arruda
E faço uma poesia concreta
Que desce serpenteando da nuca,
E vai pela sua espinha
Pela sua vida.
Escrevo uma bossinha no seu ombro
Pouso um passarinho nele
Com colcheia e semínima saindo do bico
Sem bemóis, bem leve
Que a canção há de ser alegre.
Nas suas espáduas
Desenho um par de asas.
As asas que eu sei que você tem.
Porque é sempre esse ruflar
Esse ruflar, quando penso em você.
Esse vento no rosto
Esse gosto de mar.
E por isso mesmo, suas pernas,
Eu encho de escamas
Pequenininhas
Coloridas de azul-infinito.
E cubro suas mãos de folhas
Do verde mais bonito.
Os espaços sobrando
Preencho com as espirais
Do seu mistério.
E quando eu chegar ao seu peito
E a tinta já tiver acabado
Tomo seu coração num beijo
E fico ali ao seu lado
Às margens
De você, rio
Amazonas, Tejo.

À outra D. Maria de Lourdes





Os automóveis

Não importam mais aos olhos

Da minha Maria de Lourdes.

O que importa é lutar com os ouvidos falhos

Pra escutar os suspiros imóveis

Captar o diálogo afoito

Dos amantes da novela das oito.

O que importa é receber beijo de neta

Já grande:

Não há mais máquina de costura,

Fazer vestido de boneca

Desbravar mato atrás de bambuzinho fino

Com faquinha de pão

Improvisar canudo

Soprar bolha de sabão.

Por isso essas mãos de veludo

Da falta de lida atual.

O cheiro da lembrança da minha Maria de Lourdes

É o daquele bolo de chocolate

Que nunca consegui fazer igual.

E o gosto da infância com ela

É de pão torrado com mate

É de biscoito integral

Sete, sempre

Prato e caneca de louça

Em frente à televisão.

Nunca entendi, aliás,

aquela sala fresca

Dentro daquele dia quente.

A casa toda era um alívio só

Oásis, templo, paraíso

Com seus potes de biscoito frito

Suas telas pra não deixar mosquito

Entrar de jeito nenhum.

Quiosque pra mim era só um:

E se chamava Tiosque

No português inventivo

Da minha Maria de Lourdes:

Lá entrava caixa de madeira,

Saía descanso pra panela,

trava de janela

Escora pra geladeira

Quase sempre torta

Saíam também uns bonequinhos

Que viravam cambalhota

E que meu vô me dava

Pintados de todas as cores.

No fim do dia D. Maria reclamava

De suas diversas dores

“Ah, minha fia, ando tão piançada

Acho que é coisa da idade”.

Dizia ela em toda

Sua simplicidade.

Dona Maria de Lourdes

Ainda espera por mim

Espera até tarde

Eu chegar pra dar boa noite.

E responde, repetido:

Deus lhe guarde.

Deus lhe guarde.



Conversa fiada












Tarde fresca. Um silêncio de ouvir chinelo arrastando na calçada e o som do rio, que ninguém mais ouve, pois que virou barulho contínuo inerente à vida de cá (feito bem coração batendo) e carece de atenção que só surge de uma tarde assim pra ser redescoberto. Então, no meio dessa tarde aí, dois passarinhos levando um biquinho de prosa:


- Como vai a família, compadi?


- Vai bem, vai bem. Ontem o caçula soltou um ré bonito de doer.


- Ô, que bom. Já a patroa minha anda tão bemolrenta, não sei bem o que faço. Não gosta dos meus andaços, mas já disse pra ela que num sou ararinha-azul, não. Mas que idéia dessa fêmea! Gosto da minha vida boêmia. Sou bico-de-lacre, beijo-de-moça, moça gosto de beijar.


- É, meu compadi, não sei o que te falar. Mas mulher é assim mesmo, e eu gosto da minha patroa. Levo comida boa, sábado a gente voa à toa, deixa os pequenos com a vó.


- Eu também gosto da minha, às vezes sinto dó. Mas ah, a Mariazinha, ô, rolinha fogosa. E a Carminha, a beija-flor? Ai, aquela é tão esbelta, e vive com um cheiro de rosa...


- É, tô te entendendo...


E foi só isso que ouvi. Depois ficaram ali, pensando seus pensamentos.

Etimologia



Amor
veio da palavra vento
através de um longo processo
etimológico
de derivações
aglutinações
justaposições
interlocuções
e segundas intenções.
Deu-se assim, bem lento:
Vento
Senteovento
Sentimento
Senteador
Sentidor
Hácalor
Ventilador
Acalento
Ardendo
Dentro
Rebento
Redentor
Ventorrede
Ventoflor
Hásede
Hámor.
Foi-se agá mudo
acento
pudor.

(hoje amor e vento
os dois levantam saia
da menina que se cora
vermelho bordô)