quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ao Léu




aquilo ali, meu bem
nuvem de chuva não é:
é gelo flutuando a uns nove mil metros.
cirro é que vem frente fria
logo-loguinho despendurar lençóis.

na boca dele todas as nuvens têm nome
ele sabe dos dias, dos sóis
até depois de amanhã.
capaz enxergar transparências se desprendendo do chão.

tenta me ensinar tudo.

sorrio minhas ignorâncias, satisfeitíssima:
vejo muito licor de anis derramado
vejo muitos fios de açúcar
chumaços de algodão pra tratar machucado
qualquerzinho, meu ou dele.


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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Primeiro Ensaio




porque você é esse transbordamento
de coragem, de amor
essa aragem, prenúncio
esse clamor
de vontades abertas
ofertas
liquidação de coisas boas
dessas que a gente acha e não acredita
remexe araras, prateleiras,
pronto: precisa.
peço pra embrulhar esses olhos claros
esse desejo perene de alturas
nossas tantas reconhecências
levo tudo na concha das mãos.

(loas, então
às intempéries, aos planetas
aos cometas, às mulheres
loas a essa ou aquela canção.
loas às colheres, de chá ou sopa
loas às roupas, à poeira, às janelas
a tudo mais que entortou nossas paralelas
e nos abençoou nessa interseção)





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foto: postcards from italy, beirute.

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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Notícia




o fogo queimou trezentos barracos.
repórteres anunciam
que incandescências de papelão
levaram as caixas de leite
de Cristina das Dores.

alastramentos alaranjados
labaredas fagocitam, lambem, cospem nada de volta
deixam rastro preto de lesma ácida.
fios delgados de água,
fios delgados de lágrima,
gente se arvorando em milagres.

(câmeras sobem ruelas, alardeam
Beatriz mamando no seio anônimo
da mulher quem nem a conhece.
mas o choro de fome foi sem pedir licença
gotejar os peitos
como tal.
foi milagrear.)

há mais leite no mundo, Dores.
ouça: há.
há leite que brota de gentes
feito nascente, manancial
feito flores.
tem gentes brotadinhas de milagres
de tanto mundo que as perpassa.
dizem, quase tudo é chamas, Dores.
quase tudo passa.

(11/10/09)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

E a última flor persiste...




O poeta madrilenho Pedro Salinas bem definia a língua de um povo como “a fraternidade misteriosa que cria o feito de chamar desde crianças as mesmas coisas com os mesmos nomes”. Pois é exatamente esse sentimento que experimentamos com o documentário “Língua: Vidas em Português”, dirigido por Victor Lopes, um moçambicano com nacionalidade portuguesa e radicado no Brasil há trinta anos. Sua obra passeia pelo Brasil, Portugal, Índia, Moçambique, França e Japão, e enquanto vai captando o cotidiano de pessoas comuns inseridas em contextos sensivelmente díspares, tecendo uma colcha de retalhos cultural de um viço ímpar e incontáveis nuances, vemos onde tudo se afunila em um ponto comum: todos falam português. Vemos, ouvimos e nos inserimos na mesma enorme gama de mais de 200 milhões de pessoas pelo mundo que, em suas particularidades lexicais e diferenças de sotaque, compartilham da herança lingüística da “última flor do Lácio”.

O documentário de Lopes ainda conta com a participação de ilustres como José Saramago, Mia Couto, Martinho da Vila e João Ubaldo Ribeiro, que vão permeando o fluxo da narrativa com suas reflexões sobre a língua Portuguesa em diversos aspectos: a existência ou não de um Português padrão, se suas mudanças implicam em uma involução ou evolução, a necessidade do ser humano de fazer parte de alguma coisa, e como o idioma vem a se inserir nesse processo de pertencimento. Em meio a tudo isso, um vendedor de balas no Rio de Janeiro usa de seu discurso persuasivo dentro de um ônibus lotado, crianças em Moçambique repetem em coro as falas de uma professora que lhes conta sobre o amanhecer e dois jovens lisboeses comentam sobre a vida na capital portuguesa. O tempo todo o Português é matéria viva e personagem onipresente na proliferação de metalinguagens, simplicidades do cotidiano, crenças, aspirações, angústias.

Não há como passar incólume, depois de assistir a esse documentário, pela sensação muito real de que a língua é um organismo que respira, que se molda, que se reinventa a cada dia através de seus falantes – e os une, também, nessa enorme rede invisível e intercontinental com pareceres de fraternidade perene. Como o sol que sempre amanhã aparece outra vez, na voz das crianças moçambicanas.

Milena Paixão


LÍNGUA – VIDAS EM PORTUGUÊS
Brasil \ Portugal – 2003
Direção: Victor Lopes
Duração: 91 minutos



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Esse artigo foi publicado na Folha do Espírito Santo em 24/09/09, por ocasião da exibição do documentário "Língua - Vidas em Português" no Cineclube Jece Valadão. Não é uma tipologia de texto com a qual estou acostumada, mas tenho um carinho especial por esse documentário e aceitei com prazer a empreitada de escrever um texto sobre ele, divulgando a sessão. Aproveito para parabenizar Gilson e Beto pela retomada das sessões de nosso cineclube e convidar a todos que estejam por aqui numa quinta à noite para comparecer ao Studio 27, às 20:30h, para curtir um filminho bom e um papo agradável.

Abraços!