segunda-feira, 5 de outubro de 2009

E a última flor persiste...




O poeta madrilenho Pedro Salinas bem definia a língua de um povo como “a fraternidade misteriosa que cria o feito de chamar desde crianças as mesmas coisas com os mesmos nomes”. Pois é exatamente esse sentimento que experimentamos com o documentário “Língua: Vidas em Português”, dirigido por Victor Lopes, um moçambicano com nacionalidade portuguesa e radicado no Brasil há trinta anos. Sua obra passeia pelo Brasil, Portugal, Índia, Moçambique, França e Japão, e enquanto vai captando o cotidiano de pessoas comuns inseridas em contextos sensivelmente díspares, tecendo uma colcha de retalhos cultural de um viço ímpar e incontáveis nuances, vemos onde tudo se afunila em um ponto comum: todos falam português. Vemos, ouvimos e nos inserimos na mesma enorme gama de mais de 200 milhões de pessoas pelo mundo que, em suas particularidades lexicais e diferenças de sotaque, compartilham da herança lingüística da “última flor do Lácio”.

O documentário de Lopes ainda conta com a participação de ilustres como José Saramago, Mia Couto, Martinho da Vila e João Ubaldo Ribeiro, que vão permeando o fluxo da narrativa com suas reflexões sobre a língua Portuguesa em diversos aspectos: a existência ou não de um Português padrão, se suas mudanças implicam em uma involução ou evolução, a necessidade do ser humano de fazer parte de alguma coisa, e como o idioma vem a se inserir nesse processo de pertencimento. Em meio a tudo isso, um vendedor de balas no Rio de Janeiro usa de seu discurso persuasivo dentro de um ônibus lotado, crianças em Moçambique repetem em coro as falas de uma professora que lhes conta sobre o amanhecer e dois jovens lisboeses comentam sobre a vida na capital portuguesa. O tempo todo o Português é matéria viva e personagem onipresente na proliferação de metalinguagens, simplicidades do cotidiano, crenças, aspirações, angústias.

Não há como passar incólume, depois de assistir a esse documentário, pela sensação muito real de que a língua é um organismo que respira, que se molda, que se reinventa a cada dia através de seus falantes – e os une, também, nessa enorme rede invisível e intercontinental com pareceres de fraternidade perene. Como o sol que sempre amanhã aparece outra vez, na voz das crianças moçambicanas.

Milena Paixão


LÍNGUA – VIDAS EM PORTUGUÊS
Brasil \ Portugal – 2003
Direção: Victor Lopes
Duração: 91 minutos



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Esse artigo foi publicado na Folha do Espírito Santo em 24/09/09, por ocasião da exibição do documentário "Língua - Vidas em Português" no Cineclube Jece Valadão. Não é uma tipologia de texto com a qual estou acostumada, mas tenho um carinho especial por esse documentário e aceitei com prazer a empreitada de escrever um texto sobre ele, divulgando a sessão. Aproveito para parabenizar Gilson e Beto pela retomada das sessões de nosso cineclube e convidar a todos que estejam por aqui numa quinta à noite para comparecer ao Studio 27, às 20:30h, para curtir um filminho bom e um papo agradável.

Abraços!

4 comentários:

Léo Fardim disse...

...me despertou uma vontade muito grande!

quero ver esse filme.

bjao Mi : )

Roberta Malta disse...

Ei milena
acho que deveria investir nesses tipos de textos: ficou ótimo e leve. Afinal, também são tentaivas de renovar nossa flor, que vc com tanta qualidade já usa pra nos unir e nos mostrar com palavras esse mundo que nos cerca.

bjão

aluah disse...

adorei o documentário
temos uma língua linda

RUTE disse...

Milena, querida, finalmente vim cá.

Me perdoe a ausência.

Quanto ao documentário, desconheço mas vou procurar. Fiquei muito curiosa em assistir. Adoro cinema documental.

Lembrei de um outro doc: Lisboetas. Você viu? É sobre a imigração em Portugal e suas consequências para os que entram e para os que já cá habitam. Muito bom!

Enviei um email pra vc. Recebeu?
Beijinho,
Rute