domingo, 17 de março de 2013

Nota de agradecimento



Eu me lembro dos meus oito anos, me lembro bem. Como todas as crianças, eu esquadrinhava o chão enquanto ia caminhando, e coletava meus pequenos tesouros. Outros, deixava ali, que eram parte do pavimento, pertenciam ao espaço entre dois paralelepípedos e às poças depois da chuva. A essa idade eu tinha um flamboyant de esquina, e embaixo dele um bloco de pedra com inscrição enigmática: números, letras. Em minha cabeça aquele bloco estava ali desde o início dos tempos, pequeno monolito misterioso, propriedade de todas as crianças da rua, sentadouro para a brincadeira de passar anel e leituras de gibi. Dividia frequentemente o lugar na pedra com uma amiga de minha idade, e à tardinha conversávamos nossas importâncias pueris, remexendo musgos com palitinhos. Do outro lado da rua havia uma garagem, com um cadillac abandonado meio tragado já pela terra batida. E britas, havia tantas. Montanhas, sempre alguém reparando a casa lento lento, subíamos nos morros cinzentos, o barulho bom, catávamos as melhores pro jogo-das-cinco-pedrinhas. Conservo muito vivos meus chãos de infância na memória, sabendo-os todos de cor: degraus irregulares do beco, calçada lisinha que servia de rampa pra deslizar quando chovia morno no verão. Cada calçada da minha rua era um acontecimento único, de materiais e inclinação variados, que escolhíamos de acordo com a brincadeira. A calçada rachada no meio era para queimada. Aquela com subida pra garagem era pra partir com a bicicleta, morro abaixo íamos. Andávamos descalços muito, nos sentávamos em qualquer lugar. Quando você é criança é mais próximo do chão, das suas texturas, cicatrizes. Pode ser que também saia com alguma cicatriz – a minha está bem debaixo do queixo – mas é só porque não se pode passar incólume por tanta intimidade. Os seus chãos te marcam, de uma maneira ou outra.

A coisa é que um dia vão te afastando deles. Te ensinam a olhar pra frente, pra muito lá adiante. Te ensinam sobre germes e bons modos. Te ensinam sobre a pressa. Veja que eu nunca aprendi muito bem.  Nem eu, nem Manel, nem tantas gentes mais, deslumbradas, admirando caracóis. Que bom. Continuo colecionando meus chãos, e em boa companhia.

Agora, por exemplo, tenho uma porção de novos, de terras mais ao sul. Chãos úmidos, de beiradas de lago, de beiradas de golfo e das beiradas do Pacífico, derramamento de azul. Uns repletos de pedras vulcânicas, outros poeirentos, ladeados de amoreiras. Uns encantados, de cachoeira. Seis dias de perscrutar chãos, na companhia de outros olhos e outra sensibilidade tão parecida à minha, que abraço e que me acolhe. Seis dias de andar devagar, de agachar-se sobre formigueiros e folhas e esqueletos de ouriço. Obrigada, Luz, amiga, por olhar. Por ter oito anos, junto comigo.