quarta-feira, 19 de maio de 2010

Entre os Versos e o Capitão


Antes de chegar a Isla Negra, eu já sabia: não estava indo ao encontro de uma ilha. Cheguei a um povoado bem ancorado à terra, com suas ruazinhas e sua plenitude feita de sol enquanto em Valparaíso, naquele mesmo dia, havia frio e mariscal. Vi que as areias que cercam o mar de Isla tampouco são negras. São infinitos grãozinhos cor-de-trigo, de uma aspereza gentil a solas de pés. Sobre essa mesma areia pessoas e grandes pedras – essas sim, escuras – dividiam o espaço enquanto contemplavam o azul do pacífico a poucos passos. A impossíveis poucos passos, para algumas das guardiãs estáticas e sombrias que as ondas não alcançavam com seu estrondo e sua espuma. Assim como aquelas grandes pedras mansas, também não cumpri os poucos passos em direção ao mar. Era tardinha, o sol já estava em ângulo oblíquo no céu limpo de nuvens, enegrecendo a silhueta das pessoas que se punham sobre as rochas mais à frente, tornando-as também em estátuas centenárias no meu momento onírico.

Percebi que eu só poderia fazer aquela visita sozinha, ou com quem entendesse. Felizmente me enquadrei na segunda alternativa: éramos três sentados sob o sol já brando, sorrisos enlevados, com o motivo principal da viagem esperando às nossas costas: observadora, debruçada sobre o mar, a que dizem ser a mais impressionante das casas de Neruda. Estava ali a testemunha de minha mudez, de meu amor e desconcerto. Abriu suas portas para nós em meio a uma brisa já gélida, para que nos inundasse um calor cheirando a madeira e pedra, além de um cheiro que não poderia explicar, mas que me tocou mais que todos os nomeáveis. Era o cheiro das memórias despertadas por todos os objetos que o poeta colecionava – as carrancas de proa, os diablillos mexicanos, os garrafões dispostos ao longo das janelas de vidro, os caracóis de todos os tamanhos e proveniências – expostos em uma sala azul que Neruda nunca conseguiu terminar. Também havia o cheiro da espera de uma mesa permanentemente posta para amigos que não viriam mais, mas que ali estavam imortalizados nas diversas fotos coladas nas paredes (entre eles Vinícius de Moraes e Jorge Amado). Enquanto cruzávamos os corredores e cômodos que se assemelhavam a camarotes de navio, uma mulher nos dava em um espanhol suave suas explicações mais que bem pronunciadas, numa calma que não condizia em nada à minha emoção em ouvir sobre como a escrivaninha posicionada sob uma janela havia sido na verdade uma porta que chegou até ali com o acaso e com as ondas do mar; sobre Maria Celeste, a carranca que vertia lágrimas no inverno; ou sobre o cavalo que havia sido presenteado com caudas por três amigos do poeta, que lhe pregou todas e o taxou de “o cavalo mais feliz do mundo”, por possuir três caudas. Tudo isso tinha o cheiro que ainda posso evocar.

No andar de cima, o quarto de Neruda e Matilde se abria ao mar através de amplos janelões de vidro que iam do teto ao chão, de um lado a outro do cômodo, servindo-lhes uma vista opressoramente bela do mar. Caso estivessem ali deitados, naquele momento, teriam o sol a ponto de se pôr aos seus pés, como eu imaginava que havia ocorrido incontáveis vezes. De certo modo nesse lugar ambos ainda repousam – ao ar livre, num promontório que recebe diariamente o vento úmido do pacífico. Deixei que meu olhar se desviasse das letras e datas para uma pequena menina que brincava nos degraus do mausoléu. Senti que o espírito do poeta e seu amor por Matilde, por seu país e por todas as coisas que designam os cacos indispensáveis à integridade de qualquer alma, se espraiavam com leveza sobre tudo ali, iam e vinham se espiralando no vento, entre os cabelos das pessoas. Estávamos todos um tanto comovidos e chascones.

Ao final, percebi que havia passado grande parte do tempo calada durante e depois da visita. Minha amiga chilena me dirigia um olhar cúmplice de quem entendia, e de quem, mesmo depois de haver estado ali já algumas vezes, tinha a mesma sensação que eu. Caminhamos os três - eu, ela e seu filho - até os fundos da casa, para assistir a como o sol mais uma vez se punha aos pés do eterno marinheiro de terra firme. E o brindamos com taças de silêncio emocionado. Salud.


(texto publicado na edição de abril da revista Cachoeiro Cult. Foto por Cristina Briceño)

16 comentários:

caminhante disse...

eu nunca estive lá, mas agora é como se já fosse meu, o seu olhar e silêncio.
obrigada!

C. disse...

venho e vejo tua beleza suspirante de sempre.

Daniel. disse...

como sempre bem esccrito, sublime e poético, afinal de contas é vc né milena!!!!!!!!!! abraços

Marcos disse...

Deu vontade de ler 20 Poemas de Amor & Uma Canção Desesperada, do Neruda.

uma quase Leonardo disse...

emocionada demais para escrever o que senti ao ler seu relato... passeei com você, com seu coração o olhar que percorria esse lugar com tamanho sentimento.. dá até saudade.. grata por me transportar.. foi de leve a intenso, um lindo por do sol..

uma quase Leonardo disse...

PS: meu livro chegou! =D

Ludmila Clio disse...

ai, Milena...

Moça disse...

Quem dera eu poder estar onde você esteve... me arrepiou só de ler a sua descrição do lugar. Lindo demais.

Karla Thayse Mendes disse...

Que lindo esse lugar!
Encantada!
Beeijo

Sylvia Araujo disse...

Ah, Milena... mais bonito do que a casa e seus subterfúgios é esse sentimento tão bem escrito de quem sabe sentir.

Tão lindo tudo aqui que me emociona.

Beijo enorme

Karol disse...

Sentimentos sempre tão bem escritos. À mostra. Faz falta. Volta.

Flávio Borgneth disse...

Ta diferente. No anterior já era assim. Isso é bom, sinal de que várias pessoas moram nas suas mãos. Que Neruda abençoe com boas garrafas de mar.
Obs: Fiquei triste pela mesa solitária.

Flávio Borgneth disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Flávio Borgneth disse...

Temos que nos ver sim. Mas parei de calcular data. Vejo que vai depender do depende. Exatidão não funciona quando são estrelas que ajudam governar. Acho que as pontes estão jogadas. Já fizeram essa estrada faz tempo. Além do mais, muita da minha curiosidade mora nas rodas de palavra que você rodeia aí em Cachoeiro. Tem que juntar o povo e escrever uns baldes pra derramar Isso tem que acontecer no mundo inteiro.
Enfim, to com mania de grande.
Bom dia e até!

O insustentável peso de ser disse...

Quando me lembro que minha alma precisa ser cuidada, lembro de vir aqui para acariciá-la com suas palavras. Gosto da singela maneira a qual você descreve as coisas e eu, que vivo em busca da simplicidade, encontro um cabedal infindável aqui.
Não tenho palavras suficientes. NUNCA.

Beijo.

P.S.: Estou passando uma temporada em Castelo.

Luiz Carlos Cardoso disse...

Hoje, agosto de 2010, entendo muito mais seu texto. :)