segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Cômodo


Havia ali uma chave, pra fechadura de uma porta geniosa que não deixava a chave virar enquanto ela não estivesse nem muito pra lá, nem muito pra cá, mas em flutuante equilíbrio . E a porta pertencia a um quarto sem uso em que jazia apenas uma cômoda de madeira escura e rústica com gavetas vazias. A moça havia se mudado há pouco tempo para aquela casa, que se mostrava maior do que ela realmente precisava. Sozinha, tomara apenas um dos quartos, adjacente ao primeiro, em que couberam todas as suas poucas coisas, com exceção da velha cômoda herdada da avó (mais por destoar do resto da mobília marfim que por falta de espaço).

Então, ali ficava o quarto, com a cômoda no âmago, como um filho na barriga, encerrado no mistério do porvir. A cômoda e o quarto causavam-lhe uma sensação de iminência e solidão tão aguda, que a moça sempre mantinha a porta fechada. Essa última pelo óbvio da cômoda ali, tão disponível e desacompanhada. E a primeira porque não era possível a solidão de uma cômoda num quarto. Era sacrílego, e sempre que ela ali entrava, pra desfazer o trabalho árduo da poeira, que levava dias pra se juntar em uma fina camada sobre o chão (e a cômoda), achava que algo estava pra acontecer, e logo. E saía com a urgência e a tez pálida de quem comete um crime.

Até o dia em que a moça foi iluminada por uma simplicidade que lhe queimou as maçãs do rosto. Noitinha de terça-feira, tirou os saltos na entrada do prédio, pra que pudesse correr pelas escadas acima. Tinha umas frases na cabeça, e não podia perdê-las de nenhum jeito. Girou a chave na fechadura com as mãos trêmulas, e buscou o bloco e a caneta que sempre ficavam ao lado do telefone.

“Hoje plantei três mudinhas de quaresmeiras numa terra boa assim da cor do seu olho. Fevereiro que vem já vão dar flor.”

Dobrou o papel em quatro e dirigiu-se para o cômodo vazio, que, uma vez aberto, parecia muito mais compacto agora que se enchera de propósito. Abriu a primeira gaveta da cômoda e pousou o papel sobre a madeira. Quando fechou a porta atrás de si, transbordava de um corretíssimo sentimento de satisfação, como se o mundo tivesse retomado uma ordem obrigatória, que ela houvera desorganizado ao criar aquele sem-sentido para o quarto.

Mas agora não havia mais angústia, pois que o sentido estava bem ali: era um quarto de memórias, afinal. Agora ela não precisava ter medo de esquecer nada, que era só trancar tudo ali e pronto. É que não contei ainda, mas a moça morria de um medo de esquecer as coisas. Mas não era o tipo de esquecer daqueles de deixar molho de chave em mesa de padaria, ou sombrinha em banco de ônibus. Era uma desmemória que ela julgava muito mais séria, como esquecer o barulho da chuva sobre o toldo de ponto de ônibus num certo dia de verão, ou aquela frase que o namorado havia dito tão à toa com um sanduíche pelo meio nas mãos.

Depois de pouco tempo as três gavetas da cômoda estavam abarrotadas. A primeira de papéis escritos:

“Mais ou menos é sempre menos, filha.” – disse a velha na fila, filosofando a esmo.

“Como faz sorvete céu-azul, quando o dia tá assim?” – perguntou ao sorveteiro o menino de quatro anos, na fatalidade de um dia nublado.

“Separo um pouco pra você, todos os dias, sem azeitonas” – disse a moça do refeitório.


A segunda era de fotos. A do topo, por exemplo, tinha muita gente na calçada, em volta de um saquinho de pipoca esparramado, feito corpo caído do oitavo andar. Pelas expressões, quem mais sofria era uma menina de uns cinco anos, viúva.

A terceira, de CD’s etiquetados. RISADAS, ONDAS, ELE RESPIRANDO ENQUANTO DORME, etc.

Daí vieram as caixas. Muitas, pelo assoalho: um brinco de miçanga verde encontrado no chão do metrô (“de uma garota que saiu de um sebo com Kundera sob o braço”), uma chave cor de cobre, laço de fita encarnado (“saída de uma escola – festa de São João”), carrinho de brinquedo sem rodas traseiras, um chinelo verde água número 33, uma brita de construção (“obra de casal simpático, provavelmente recém casados”), pingente meio quebrado em forma de gota.

Mas ainda havia o medo. Era tanta coisa na vida pra entregar aos caprichos duvidosos da memória humana. Pensou e pensou e teve uma idéia. Revirava esses pequenos tesouros quando ouviu as batidas na porta da frente. Era o namorado. O Jonas, Jonas das quaresmeiras em flor em fevereiro.

“Me ajuda com a cama”.

Jonas desmontou a cama e o pequeno armário de roupas. Montou de novo no outro quarto. Jonas levou televisão, filmes gravados, ajudou com todos os livros. Muito compreensivo, não questionava, apenas ouvia:

“Não posso esquecer essas histórias, Jonas. Sabe quando Mário fala que vai afundando o nariz pelos cabelos de Maria, e diz que é engraçado como a perfeição fixa a gente? Sabe?”

“Sei...” Jonas sem muita certeza.

“Então, imagina se me esqueço disso, não posso nunca não. Aqui fica tudo seguro, nunca esqueço.”

“Tou te entendendo.”

“Jonas...”

“Sim?”

“Sente ali na cama, vá? Queria te ver ali.”

Jonas sentou. Súbito, a moça saiu correndo, trancou a porta por fora. Dois breves segundos de silêncio e depois gritos de abre abre abre, agora, você está louca. Batidas na porta. Já estava arrependida, tentava girar a chave para abrir o quarto, mas Jonas, enfurecido, forçava para puxá-la, do lado de dentro do cômodo. A chave não girava, a moça chorava, Jonas gritava.

Até que o barulho tilintante e inevitável pôs fim ao caos: a chave partiu-se em duas. A moça olhou a metade que segurava entre os dedos. Do outro lado da fechadura congestionada, apenas silêncio incrédulo.

“Desculpe... amanhã bem cedo chamo um chaveiro” disse, numa súplica quase sem voz. A resposta veio dura, reta:

“Tudo bem.”

Não havia nada a fazer a não ser esperar. Com a alma arrasada, debruçou-se na janela, e, depois de tanto fitar o breu da noite acima, sentiu sono. Cochilando com as mãos sob o queixo, sonhou um sonho estranho onde tudo ganhava asas e saía voando pela janela do quarto ao lado. Jonas, com suas belas e longas asas cor de creme, liderava a comitiva. E lá se ia tudo atrás, até o último papelzinho com trejeitos de borboleta, do décimo andar de um prédio cinzento de São Paulo em direção à lua.

Acordou encolhida sobre o tapete na manhã seguinte, sem lembrar o próprio nome. Correu para o outro quarto. Esquecida também da idéia do chaveiro, e com uma força de desespero que desconhecia, deu três chutes no centro da porta e o interior do quarto se expôs com a violência de um soco de revide: janela escancarada, e nada além de uma longa pena planando pertinho do chão com a brisa da manhã.

13 comentários:

Marcelo Grillo disse...

Eis a pérola!

Ale disse...

um dia ainda vão me descobrir lendo os seus textos em pleno horário de trabalho, rsrs. Mas é impossível não parar pra ler. Muito bom!

bjo!

Marcelo Grillo disse...
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Vinicius Langa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcelo Grillo disse...

Não vou citar frases, letras ou vírgulas, sempre tão bem colocadas. Quero apenas expressar minha admiração. Sou teu fã.

the drama queen disse...

eu também sou fã
=)
e agora por um motivo além de que vc faz o melhor bolo de chocolate
hehe
beijo, Paixão!

Anônimo disse...

É lindo... A simplicidade vista do seu ângulo é sempre encantadora...

Tô no aguardo do livro!!

Beijos!

Renata Mofatti disse...

E aí Pão de Sol, conheces Milena Paixão??? Se não, eis umas partes dos escritos dela! Tudo é muito belo...

1º - flutuante equilíbrio
2º - tez pálida de quem comete um crime
3º - queimou as maçãs do rosto
4º - terra boa assim da cor do seu olho
5º - uma vez aberto, parecia muito mais compacto agora que se enchera de propósito
6º - sem-sentido para o quarto.
7º - era um quarto de memórias, afinal
8º - esquecer o barulho da chuva sobre o toldo de ponto de ônibus num certo dia de verão
9º - fatalidade de um dia nublado.
10º - menina de uns cinco anos, viúva.
11º - uma brita de construção (“obra de casal simpático, provavelmente recém casados”
12º - caprichos duvidosos da memória humana
13º - como a perfeição fixa a gente? Sabe?”
14º - apenas silêncio incrédulo.
15º - um sonho estranho onde tudo ganhava asas e saía voando pela janela do quarto ao lado
16º - papelzinho com trejeitos de borboleta (...) em direção à lua
17º - nada além de uma longa pena planando pertinho do chão com a brisa da manhã.

Ludmila Clio disse...

Mi,
estou encantada! Com um tom extremamente simples e formoso, porém nada simplório, vc transmite todo sentimento... senti medo, agonia, ansiedade em guardar os pensamentos, tudo tudo que foi relatado.
É um privilégio lê-la!! Estou muito feliz por ter acesso a vc. Entenda isso de todas as formas!!!
Beijão!

Anônimo disse...

Bela história, moça! Levei até um susto quando a esquecida trancou a porta - o que fez bastante sentido, inclusive. E devo dizer que me identifiquei com a história. É, pensando bem, tem um quartinho lá no quintal...

Anônimo disse...

Hei, Fada das Flores,

Estranhamente, um sentimento de "eu já sabia!" me enche até as orelhas - ficando plantado ao lado do sorriso que também vai até elas - quando entro aqui no seu cantinho florido.

Você é uma escritora e tanto, Mi!
Beijos,
Sun

Daniel. disse...

uma ambiência exata,mistério e poesia nos acompanha na leitura desse texto. a questão do quarto de memórias é bem interessante, volta e meia fico meio triste por esquecer algo e de certa forma morrer um pouco com esse esquecimento, mas fazer o que?? de vez em quando é bom reunir um bolo poesias feitas por nós e tacar fogo. como o mato que quando queima cresce mais verde, agora: no quesito, coesão e precisão no que se diz e na maestria em jogar com as palavras só posso dizer: 'perfeição'

M.Maria M. Coutinho disse...

Meus suspiros para você!
Parabéns!