domingo, 19 de julho de 2009

Mancha




Naquela manhã cinza o dia foi levando Rita pela mão com maus modos: o café havia dormido mais que ela, por isso saiu de casa mastigando a seco mesmo um biscoito de maisena. No ônibus, não havia lugar pra sentar, na bolsa, não havia trocado certinho, no cobrador, não havia paciência, e nem nas pessoas, educação. Rita se agarrava às suas coisas com uma mão, e com a outra se segurava como podia à barra de um assento, tentando ignorar a inconveniência ocasional das pessoas que, de passagem, se espremiam contra ela. No trabalho, teve dor de cabeça, meia hora a menos no almoço, um sem-número de telefonemas infrutíferos, hora extra.

E, além de tudo, aquela chuva que no fim do expediente, e no meio do caminho, veio encontrá-la sem sombrinha. Fechou os olhos sob a água torrencial, mas não buscou abrigo: preferiu seguir para casa em passos lentos, coração resignado, esperando que junto com a água lhe fossem escorrendo pelo corpo todos os litros de frustração.

Mas, quando finalmente abriu a porta de casa, cumprimentou-a o cheiro inconfundível de bolo acabado de sair do forno. A vida era boa novamente. Chegou à cozinha para encontrar a mãe e a irmã mais nova arrumando a mesa do café. De roupa trocada, toalha sobre os ombros e o mundo de volta aos eixos, sentou-se junto às duas. E lá se foram generosas fatias de bolo com leite recém fervido fumegando nas xícaras - eram três graças de sorrisos enlevados.

Rita pensou no cheiro do leite, no gosto do chocolate, na textura da toalha macia, no sagrado. Pousou olho fixo no bolo de chocolate, como nunca havia feito antes. Era um bolo simples de cobertura, comum nos cafés da tarde, mas cujo gosto supostamente conhecido os eventos do dia haviam feito o favor de acentuar. A moça sentia o cheiro de chocolate e salivava com a boca e com os olhos - que marejavam involuntariamente, e ela tinha que se dar ao trabalho de piscar muito para evitar que as lágrimas simplesmente vertessem contínuas por suas bochechas. O bolo parecia crescer diante dela, ganhando contornos cada vez mais nítidos.

Até que o inevitável aconteceu, a irmã sempre com aquela mania. Rita viu tudo em câmera lenta: a faca se aproximando, o ângulo enviesado, uma lasca grande de bolo se desprendendo irregular, com mais cobertura do que lhe cabia.

A pequena menina lambeu os dedos depois da normalidade do ato.

Rita continuou olhando o bolo, a mãe sorvia o leite folheando uma revista qualquer. E o ar ficou inerte como dizem que acontece logo antes de um grande estrondo de desastre. Deslizamento de lama, choque de trens, terremoto, onda gigante:

"Raio de menina egoísta! Por que não corta esse bolo do jeito certo, como todo mundo faz?"

Não houve resposta. A irmã, atônita, estendeu os braços junto ao corpo e baixou a cabeça, acometida por uma vergonha que desconhecia até então. A mãe, por sobre os óculos, repreendeu a filha mais velha com um olhar duro. E por vários segundos os resquícios da catástrofe pairaram no ar, agonizaram tremelicantes sobre o chão, até que Rita tentou um remendo:

"Não ligue pro que digo. Vem, termine seu bolo, tome lá mais um pouco de leite."

Mas não houve jeito. No ímpeto de servir a irmã, a moça deixou a leiteirinha cair, entornando tudo sobre a mesa. Nessa noite custou a dormir, com a culpa atravessada entre as pálpebras: arruinara uma tela de Rubens.

Choveu por mais dez noites e onze dias.

12 comentários:

Marcelo Grillo disse...

Não se chora leite derramado, nem sobre tela de Rubens nem sobre livro de Chico. Ah, mas se fosse sobre um Lautrec ou sobre um Rubem... ah, aí tinha briga.
Mas essa irmã da Rita, hein...

Gabriela Galvão disse...

Comecei a ler, fui escrever um negocinho.

E o fim foi tipo o q me veio. (Ñ a forma, mas a idéia.)


Ficou ótimo, Milena. Abraço.

Unknown disse...

Essa menina demora a aparecer, mas quando o faz é sempre em grande estilo.
Excelente o texto.
Deu vontade de sentir cheiro de bolo.
Com café e sem derramar...
Parabéns!!!
PAZ!!!
P.S. - as letras para verificação de palavras deste comentário formam "pingiz"... lembra pingüim (com trema), ou pingo de giz...
Uma ótima segunda-feira gelada pra vc!!!

C. disse...

ai =/

Fábio Ricardo disse...

momentos são assim: surgem sem avisar, e se vão num piscar de olhos.

mas sempre deixam a vida mais leve.

gabriel ramos disse...

Eu gostei tanto. :~

Um beijo, doce.

Gracy Laport disse...

a boniteza de moça continua com o lápis que agrada.
um beijo, querida!

Anônimo disse...

Uma coisa que chuva lava é a alma - e o tempo. As coisas deixam de ser o que são: naquele momento é tudo aguaceiro na cara e uns fios de pensamento na cabeça.

M.Maria M. Coutinho disse...

Aqui chove e faz frio.
Meio catástrofe: desmarquei a entrevista pra minha monografia e o dia, só rendeu uma ida ao mercado.
O frio e a chuva me deixam Rita!
Bjo

C. disse...

ah,eu gostei...só que dói um tiquinho!
sempre bom quando aparece aqui "Paixão, M." ^^
um xerinho

Flávio Borgneth disse...

Só lembramos da rotina quando ela quebra.
Eu vi o leite, vi o bolo, uma mesa e um monte de erros de família. Vi uma chuva de leite derramado...
No fim me deu uma pena danada da Rita. Pessoa sem chocolate.

Gostei, como sempre!
Bj!

Obs: depois tenho que conversar contigo, to com umas idéias e gostaria de saber tua opinião. Te acho!

Ronni Anderson disse...

Seu jogo de palavras é inebriante, fascinante...
Gostei! Eu diria que muito!