quarta-feira, 2 de julho de 2008

Pequena Saga do Passarinho Mudo





Nasceu numa manhã de março – manhã cinza de chuva forte. O desespero de seus irmãos e a água caindo do céu daquele jeito ensurdecedor falavam mais alto que sua própria estupefação e aquela fome visceral de ter um pedaço do mundo preenchendo por dentro (que podia, sim, vir em forma de um nacozinho de minhoca, por favor). Mas como quem não chora não mama, veio minhoca, veio lagartinha e o escambau, e nada de sobrar um pedacinho que fosse pra saciar aquela fome, que parecia ser maior que sua pancinha pelada de filhote. Foi só quando os outros dois pequeninos se acalmaram, assonsados com o banquete, que ele conseguiu se fazer notar. Ora, reparou muito bem reparado que era tão feio e cabeçudo quanto os outros dois, e não entendeu o porquê da exclusão – palavra humana que não conhecia, mas que sentia fazer tremer seus cambitinhos. Daí abriu bastante o bico e aproveitou o silêncio e a coincidente estiagem pra gritar bem alto por uma minhoca muito da gorda, e que fosse sem demora:

“ ”

E foi isso: um fiapo de ar que nem vestígio algum de som tinha. O passarinho ainda continuou aquela pantomima maluca, e os genitores, embasbacados, entenderam tudo:

“Josefina, o piá é mudo feito uma porta.”

“Mudo. E agora, Astolfo?”

“E agora?”, devolveu Astolfo.

E agora? E agora, minha gente, que o passarinho mudo fez a única coisa que poderia fazer naquele momento: cruzou suas asinhas diminutas numa bela banana para seu Astolfo e dona Josefina e catou o primeiro besouro cascudo que achou dando sopa na borda do ninho, enfiando-o bico adentro. E lá se foi, arranhando, relutante que só, seu primeiro pedaço de mundo goela abaixo.

E por muitas vezes ainda o mundo seria bem difícil de engolir. Afinal, quais são as perspectivas de um passarinho incapaz de cantar? De embalar com suas canções namoradinhos num fim de tarde, de provocar o assovio do senhor fumando um cachimbo na varanda?

Vá saber. O fato é que, num dia qualquer, pegaram o passarinho numa arataca. Foi o caos. Era um casal de velhos. Colocaram o bicho numa gaiola e ficaram olhando. A velha o achou tão bonito, daquela cor amarelo-manga, achou muito lindo mesmo. O velho foi logo dizendo que era um canário belga, que canário cantava que era uma beleza, e que canário belga, então, era uma coisa assim de doido, devia ser porque tinha vindo das europas.

Ficaram olhando aquela alteza de além-mar.
E o passarinho lá, mudinho da silva.

“Ô, Maria, o bicho tá assustado. Vamos dar um tempo pra ele se acostumar que daqui a pouco ele canta, cê vai ver.”

E o tempo virou um dia, dois, e nada. A velha já estava ficando exasperada. Então quer dizer que aquele bicho folgado comia, bebia e fazia sujeira o dia inteiro, pra não soltar nem uma notinha que fosse?

“Geraldo, você que limpe essa gaiola! Assistencialismo, comigo, não!”

O velho, esperançoso e paciente, aceitou a empreitada. E até começou a fazer umas pesquisas, pra descobrir um jeito de desencantar aquela peste de canarinho. Um dia descobriu algo interessante: leu em algum lugar que música clássica era um negócio ótimo pra inspirar canto de passarinho. Não perdeu tempo. Juntou a nata daquele pessoal – Beethoven, Mozart, Bach e tal, e começou a tocar aquilo o dia inteiro.

De início parecia que algo havia despertado no canarinho. Ele ouvia os sons com tanta atenção, que seu Geraldo tinha certeza que ele começaria a cantar a qualquer momento. E, realmente, logo toda aquela música erudita surtiu resultado. Manhãzinha de setembro, corre seu Geraldo à cozinha acudir dona Maria, pois tinha ouvido um barulhão de caneca se espatifando. Chegando lá, a cena tétrica: aquela bagunça de café com leite e cacos pelo chão, e a velha com as mãos no rosto e os olhos esbugalhados em direção à gaiola.

Ao som da Sinfonia n. 3 de Beethoven, o passarinho brandia suas asas no ar energicamente, olhinhos fechados e expressão grave, como um regente apaixonado à frente de uma primorosa orquestra invisível. Mas sua carreira como maestro naquela casa foi curta. Apesar dos protestos do marido, dona Maria escancarou a portinhola e sacudiu a gaiola na janela.

“Xô, passarinho caduco.”

Bem que o canarinho tentou dividir sua mais nova e maravilhosa descoberta com os outros pássaros. Pôr-do-sol, quando todos voltavam em revoada, ficava por perto. Num lugar visível, enquanto os outros cantavam, ele se punha a sacudir as asinhas, como se pudesse fazer daquela desordem de pios uma bela sonata de ocaso... Mas qual o quê! O bem-te-vi continuava com aquela história de ter visto não sei quem, e o sabiá só sabia mesmo assobiar.

Sobrou até pro galo da vizinhança. Canarinho cismou que ele era um talentoso tenor desperdiçando dom com aquela sina de despertador. O galo não entendeu e ficou por isso mesmo.

Mas, mesmo assim, o canarinho mudo viveu pra sempre cheio de música. Ele todo era música pura. Brincava de reger o som do rio, as folhas balançando e os passos das crianças. E quando cansava de reger os sons do mundo, se punha num fio bem escolhido e ficava lá por horas em pose de clave de sol. E todo mundo sabe que a tal clave mantém o sol no lugar. Ele gostava de achar que mantinha o Sol no lugar. Era tarefa nobre, era um segredo entre ele e o Universo.



17 comentários:

Anônimo disse...

minha linda, muito legal o texto, parabens, depois da espera por uma nova escrita, vem voce mais uma vez... ;)

quanto as suas palavras moça... desejo o mesmo pra ti, a saudade será grande!
bjos mil!

Vinicius Langa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Renata Mofatti disse...

"E lá se foi, arranhando, relutante que só, seu primeiro pedaço de mundo goela abaixo".

MINHA NOSSA! QUE COISA MAIS LINDA!

Mais lindo ainda é o passarinho chamando o Sol e as comparações que vc utilizou...

Valeu a pena esperar... Valeu a pena te esperar! Estou aprendendo a ter uma calma caracterítica!

Parabéns, Milena!!!

Renata Mofatti disse...

Mas primeiro tenho que aprender a escrever "característica" rsrsrs

Ale disse...

E aí Milena!!
Quando eu penso que já li tudo, vem vc com essa bela história.
Muito, muito bom!

Você usou mesmo meu texto, que honra! Eu é que tenho de agradecer. Valeu!

bjo!

Fernanda Fassarella disse...

"E quando cansava de reger os sons do mundo, se punha num fio bem escolhido e ficava lá por horas em pose de clave de sol."

Perfeito!
Por fim, ele era mais músico e música que qualquer pássaro no mundo!

Tanta idéia deliciosa vem daí! Eu amo!!

Beijo beijo

Larissa Dardengo disse...

Que passarinho fofo!
"Ele todo era música pura."

Lindo lindo!
bjs

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Pra você ver como a música tem um grande poder na vida...uma magia. Eu, apesar de ser um imbecil musical e nao saber o que é uma clave de sol, (rs) adorei e entendi o sentido....mas eu sou suspeito pra falar né.
Beijão pequena!

Caetano disse...

você que é toda música.
suas palavras musicam nossa cabeça de uma forma impressionante. uma melodia por letra, introsada e com arranjos super sensíveis.

beijinha e obrigado pelos escritos

Kamila Zanetti disse...

depois que te leio sinto até vergonha.não consigo achar palavra certa para elogiar :)

beijos!

Daniela Parajara disse...

quando eu leio você, dá uma paz...
suas palavras, sei lá...
vc pode falar do que quiser que eu sempre sinto leveza nas suas palavras.
adoro aqui, e vc tbm!

ando sumida né, sem tempo pra NADA!
;****

Anônimo disse...

o livro 1984 é tão bom quanto o filme?

Anônimo disse...

"depois que te leio sinto até vergonha.não consigo achar palavra certa para elogiar"

isso é verdade...

Marcelo Grillo disse...

rsrsrs... "E foi isso: um fiapo de ar que nem vestígio algum de som tinha". É exatamente isso o que acontece quando tento assobiar. Ba, tento uma inveja de quem assovia só com dois dedos, como a Renatinha...
Marcelo

Anônimo disse...

Milena, você é muito talentosa!
O seu jeito de dizer é bonito demais.
Não importa qual seja o tema, meu coração fica todo risonho, admirado, diante da musicalidade do seu texto.
Beijo pra você.

Alex Theodoro disse...

bem arrematado e rejuntado como azulejo de piscina infantil.