domingo, 2 de agosto de 2009

Catar-se

Era um dia de meus cinco anos e eu era toda felicidade: percebi que podia enrolar a terceira perninha do meu M num caracol de vertigem, uma boniteza sem fim. Enrolava bem fininho até onde minha coordenação de criança pequena dava, mordendo a língua de lado com o esforço bom. Desse dia em diante nunca mais larguei do lápis. Desse dia em diante o tempo passou tanto que eu descobri um monte de coisas, virei gente adulta, consegui emprego, altura, amores. Mas ainda com o lápis na mão e aquela mesma felicidade, venho convidar aos meus amigos, todos vocês, para esse momento muito especial de minha vida: o lançamento do meu livrinho de poesia.




Os agradecimentos são muitos, e todos a quem os devo sabem bem do papel importantíssimo que tiveram nessa realização. Então deixo os beijos e abraços pra hora propícia, e fica aqui meu convite e meu sorriso.

sábado, 25 de julho de 2009

Modernista

a Drummond


Tinha a incerteza no meio do caminho.
No meio do caminho, a incerteza.
E, mais pro lado, a pedra.
Tinha a pedra.

Eu vi a incerteza e franzi o nariz de pena:
A incerteza era um bichinho.
E feio, como era feio, meu deus.
E roía, como roía, com uns incisivos
Que queriam crescer pra sempre
Pra além do seu tamanho
E ainda além.

Enquanto fiquei parada olhando, a incerteza roeu tudo o que podia:
Graveto, plástico, guimba, cacos
Até a pedra.
Ainda não satisfeita, ela chegou pra mim
E deu de roer meus sapatos
Roeu até sangrar um dedão.

Mandei-lhe a pedra no traseiro.

Tinha a pedra no meio do caminho.
E no meio do caminho tinha a incerteza.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas ainda frescas.


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Esse poeminha foi apresentado no Festival de Poesia Falada de Varginha, em junho de 2009, por meus amigos Luiz e Junim. É com muita alegria que divido o vídeo com vocês:



Valeu, meninos!



(tinha que ter uma foto dessa, rs)

domingo, 19 de julho de 2009

Mancha




Naquela manhã cinza o dia foi levando Rita pela mão com maus modos: o café havia dormido mais que ela, por isso saiu de casa mastigando a seco mesmo um biscoito de maisena. No ônibus, não havia lugar pra sentar, na bolsa, não havia trocado certinho, no cobrador, não havia paciência, e nem nas pessoas, educação. Rita se agarrava às suas coisas com uma mão, e com a outra se segurava como podia à barra de um assento, tentando ignorar a inconveniência ocasional das pessoas que, de passagem, se espremiam contra ela. No trabalho, teve dor de cabeça, meia hora a menos no almoço, um sem-número de telefonemas infrutíferos, hora extra.

E, além de tudo, aquela chuva que no fim do expediente, e no meio do caminho, veio encontrá-la sem sombrinha. Fechou os olhos sob a água torrencial, mas não buscou abrigo: preferiu seguir para casa em passos lentos, coração resignado, esperando que junto com a água lhe fossem escorrendo pelo corpo todos os litros de frustração.

Mas, quando finalmente abriu a porta de casa, cumprimentou-a o cheiro inconfundível de bolo acabado de sair do forno. A vida era boa novamente. Chegou à cozinha para encontrar a mãe e a irmã mais nova arrumando a mesa do café. De roupa trocada, toalha sobre os ombros e o mundo de volta aos eixos, sentou-se junto às duas. E lá se foram generosas fatias de bolo com leite recém fervido fumegando nas xícaras - eram três graças de sorrisos enlevados.

Rita pensou no cheiro do leite, no gosto do chocolate, na textura da toalha macia, no sagrado. Pousou olho fixo no bolo de chocolate, como nunca havia feito antes. Era um bolo simples de cobertura, comum nos cafés da tarde, mas cujo gosto supostamente conhecido os eventos do dia haviam feito o favor de acentuar. A moça sentia o cheiro de chocolate e salivava com a boca e com os olhos - que marejavam involuntariamente, e ela tinha que se dar ao trabalho de piscar muito para evitar que as lágrimas simplesmente vertessem contínuas por suas bochechas. O bolo parecia crescer diante dela, ganhando contornos cada vez mais nítidos.

Até que o inevitável aconteceu, a irmã sempre com aquela mania. Rita viu tudo em câmera lenta: a faca se aproximando, o ângulo enviesado, uma lasca grande de bolo se desprendendo irregular, com mais cobertura do que lhe cabia.

A pequena menina lambeu os dedos depois da normalidade do ato.

Rita continuou olhando o bolo, a mãe sorvia o leite folheando uma revista qualquer. E o ar ficou inerte como dizem que acontece logo antes de um grande estrondo de desastre. Deslizamento de lama, choque de trens, terremoto, onda gigante:

"Raio de menina egoísta! Por que não corta esse bolo do jeito certo, como todo mundo faz?"

Não houve resposta. A irmã, atônita, estendeu os braços junto ao corpo e baixou a cabeça, acometida por uma vergonha que desconhecia até então. A mãe, por sobre os óculos, repreendeu a filha mais velha com um olhar duro. E por vários segundos os resquícios da catástrofe pairaram no ar, agonizaram tremelicantes sobre o chão, até que Rita tentou um remendo:

"Não ligue pro que digo. Vem, termine seu bolo, tome lá mais um pouco de leite."

Mas não houve jeito. No ímpeto de servir a irmã, a moça deixou a leiteirinha cair, entornando tudo sobre a mesa. Nessa noite custou a dormir, com a culpa atravessada entre as pálpebras: arruinara uma tela de Rubens.

Choveu por mais dez noites e onze dias.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Amor é Caça-Palavra



a Viviane Mosé


contrário de amor
não é ódio, rancor
não é raiva assassina
chilique, doença
dose de estricnina
nem mesmo indiferença.


contrário de amor
ao menos no meu idioma
eu circulei com vermelho
num dia de chuva:
ROMA.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Sonzinho Bom




Gente :)

O motivo desse post é muito especial. É pra compartilhar duas músicas lindas que amigos meus produziram.

A primeira é "A Um Passarim", letra bonita feita pelo Marcelo Grillo baseada no meu poema homônimo. A melodia base também é dele, e foi trabalhada com muito carinho pelos músicos e cantora (e amigos) Alessandra Biato, Junim D'Paula e Amélia Barreto. A voz primorosa quem empresta é a própria Amelinha.


A segunda é Presente, musicado na íntegra pelo Junim. É um sambinha espirituoso, resposta ao Pingüim de Vinícius de Moraes.

Como não consegui ainda achar um player que funcione por mais de um mês por aqui, vou deixar o link da minha página no Encuca, onde as músicas podem ser ouvidas na íntegra. É só descer um pouco a barra de rolagem e olhar no lado esquerdo. Elas estão lá :)

Quero pontuar aqui todo meu carinho e admiração por esses meus amigos artistas. Obrigada sempre pelo apoio, pelo abraço através de braços e atos.

Seguem abaixo fichas técnicas:

A Um Passarim
Voz - Amélia Barretto
Piano - Marcelo Biato
Violão - Alessandra Biato
Baixo - Fábio Coelho
Programação de bateria - Fábio Coelho

Presente
Voz - João de Paula Junior e Alessandra Biato
Violão - Alessandra Biato
Violino - João de Paula Junior
Chocalho - Alessandra Biato
Moringa - Fábio Coelho

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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Bolero



Em nossas caras sãs
O que vejo é isso:
Você segue muito bem
E eu tampouco lhe preciso.
E esse é um ponto pacífico
Em todas as amplas dizências
De comum acordo
De paz mesmo
De oceano de transparências
Nas coisas que se sabem sem esforço.
Daí é um sossego
Uma delícia de desapego
Melhoro da vista e do juízo
Uns bons graus antes perdidos
Vivo espaçosa em mim mesma
Num vai e vem de liberdades
Acendendo idéias
Ordenando fatos
Limpando uns cantos empoeirados
Tomo decisões num átimo
Planejo, ouso, arrisco
Enfim, o máximo.

Mas se acontece de você pousar
Essas órbitas sonsas sobre mim
É o fim.
Fico em evidente perigo
Por dentro reverbera um bolero
Brota-me uma rosa entre os cabelos
Túrgida de uma antítese infantil
Vermelha e sem mistério:

É que eu não preciso
Mas quero.


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(tela de Matisse - Odalisque)

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Poema Cético



Não acredito em carma.
Carma, meu bem, só pode ser um nome
Que há muito inventaram
Pra disfarçar obsessão
Coincidência triste
Ou as duas.
Não acredito em gente
Soberba o bastante pra culpar a lua
Por qualquer mau humor
E dizer que planeta tal
Alinhado com aquele outro
É sinal claro de malogro
Dor de cotovelo
Azar no jogo.
Eu, particularmente,
Não ligo pra borra do café:
Prefiro o gosto forte, o cheiro
O susto quente na língua.
O resto, eu dispenso, sabe como é
Que café nenhum vai ler meu futuro.
Baralho eu jogo é de quatro naipes
Em casa de praia, na roda de amigos
E amuleto eu trago de nascença
E levo sempre comigo:
Amor de pai e mãe
Espalhado no avesso da pele.
Daí pode vir olho gordo, magro
E de todas as cores:
Não noto
Não tropeço
Não engordo um quilo.
Os búzios não me dizem nada
Alem da lembrança boa do mar
E mapa, só o político.

Prefiro assim, nada místico:
Que de inferno
Já basta o nosso de cada dia
De gente chata, mesquinharia
De mil contas pra pagar
Da tristeza da criança no sinal.
Inferno bobo,
Aquele do meu signo com outro
Não quero como bode expiatório:
Me cai mal.

E além disso
O que não me sobra é tempo
Pra sofrer de inferno astral.