domingo, 13 de abril de 2008

À outra D. Maria de Lourdes





Os automóveis

Não importam mais aos olhos

Da minha Maria de Lourdes.

O que importa é lutar com os ouvidos falhos

Pra escutar os suspiros imóveis

Captar o diálogo afoito

Dos amantes da novela das oito.

O que importa é receber beijo de neta

Já grande:

Não há mais máquina de costura,

Fazer vestido de boneca

Desbravar mato atrás de bambuzinho fino

Com faquinha de pão

Improvisar canudo

Soprar bolha de sabão.

Por isso essas mãos de veludo

Da falta de lida atual.

O cheiro da lembrança da minha Maria de Lourdes

É o daquele bolo de chocolate

Que nunca consegui fazer igual.

E o gosto da infância com ela

É de pão torrado com mate

É de biscoito integral

Sete, sempre

Prato e caneca de louça

Em frente à televisão.

Nunca entendi, aliás,

aquela sala fresca

Dentro daquele dia quente.

A casa toda era um alívio só

Oásis, templo, paraíso

Com seus potes de biscoito frito

Suas telas pra não deixar mosquito

Entrar de jeito nenhum.

Quiosque pra mim era só um:

E se chamava Tiosque

No português inventivo

Da minha Maria de Lourdes:

Lá entrava caixa de madeira,

Saía descanso pra panela,

trava de janela

Escora pra geladeira

Quase sempre torta

Saíam também uns bonequinhos

Que viravam cambalhota

E que meu vô me dava

Pintados de todas as cores.

No fim do dia D. Maria reclamava

De suas diversas dores

“Ah, minha fia, ando tão piançada

Acho que é coisa da idade”.

Dizia ela em toda

Sua simplicidade.

Dona Maria de Lourdes

Ainda espera por mim

Espera até tarde

Eu chegar pra dar boa noite.

E responde, repetido:

Deus lhe guarde.

Deus lhe guarde.



3 comentários:

Renata Mofatti disse...

Te juro por Deus que chorei... Chorei muito, Milena!

VaneideDelmiro disse...

É um texto (poema) da mais pura sensibilidade, cheio de imagens e sentimentos e retratos do que fica eterno. Lembrou-me muito um poema do Carlos Drummond, chamado CARTA.


"Há muito tempo que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.

Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
esses sinais em mim, não são das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençõe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho."

Renata Mofatti disse...

Milena... Isso já é lindo!!!! Na interpretação do Luiz então.. Ficou perfeito!!! É de emocionar! Preciso dizer parabéns? Acho que não, né?