Os automóveis
Não importam mais aos olhos
Da minha Maria de Lourdes.
O que importa é lutar com os ouvidos falhos
Pra escutar os suspiros imóveis
Captar o diálogo afoito
Dos amantes da novela das oito.
O que importa é receber beijo de neta
Já grande:
Não há mais máquina de costura,
Fazer vestido de boneca
Desbravar mato atrás de bambuzinho fino
Com faquinha de pão
Improvisar canudo
Soprar bolha de sabão.
Por isso essas mãos de veludo
Da falta de lida atual.
O cheiro da lembrança da minha Maria de Lourdes
É o daquele bolo de chocolate
Que nunca consegui fazer igual.
E o gosto da infância com ela
É de pão torrado com mate
É de biscoito integral
Sete, sempre
Prato e caneca de louça
Em frente à televisão.
Nunca entendi, aliás,
aquela sala fresca
Dentro daquele dia quente.
A casa toda era um alívio só
Oásis, templo, paraíso
Com seus potes de biscoito frito
Suas telas pra não deixar mosquito
Entrar de jeito nenhum.
Quiosque pra mim era só um:
E se chamava Tiosque
No português inventivo
Da minha Maria de Lourdes:
Lá entrava caixa de madeira,
Saía descanso pra panela,
trava de janela
Escora pra geladeira
Quase sempre torta
Saíam também uns bonequinhos
Que viravam cambalhota
E que meu vô me dava
Pintados de todas as cores.
No fim do dia D. Maria reclamava
De suas diversas dores
“Ah, minha fia, ando tão piançada
Acho que é coisa da idade”.
Dizia ela em toda
Sua simplicidade.
Dona Maria de Lourdes
Ainda espera por mim
Espera até tarde
Eu chegar pra dar boa noite.
E responde, repetido:
Deus lhe guarde.
Deus lhe guarde.
3 comentários:
Te juro por Deus que chorei... Chorei muito, Milena!
É um texto (poema) da mais pura sensibilidade, cheio de imagens e sentimentos e retratos do que fica eterno. Lembrou-me muito um poema do Carlos Drummond, chamado CARTA.
"Há muito tempo que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
esses sinais em mim, não são das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.
A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençõe", e a noite abria em sonho.
É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho."
Milena... Isso já é lindo!!!! Na interpretação do Luiz então.. Ficou perfeito!!! É de emocionar! Preciso dizer parabéns? Acho que não, né?
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